Título: O preço político
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 20/03/2010, O País, p. 4
Odeputado federal Ibsen Pinheiro tem dito muitas coisas absurdas nosúltimos dias, e parece inebriado pela súbita popularidade de quedesfruta desde que apresentou um projeto de lei alterando adistribuição dos royalties do petróleo, provocando com isso umadesagregação federativa que está difícil de resolver.
Como aquele juiz de futebol que adorava ser xingado pela multidão,Ibsen a cada dia consegue dizer mais barbaridades do que no diaanterior, e parece especialmente satisfeito em afrontar o Rio deJaneiro e seus cidadãos.
Deve ter razões especiais, ou, comodisse o senador Francisco Dornelles, está perdendo a sanidade mental eprecisa da compaixão dos fluminenses. Mas ele tem razão quando insinuaque seu projeto não teria a aprovação esmagadora que obteve na Câmarase o governo não quisesse, ou se pelo menos tivesse interesse em nãoaprová-lo.
O presidente Lula se colocou como o garantidor de umacordo que mantinha a distribuição dos royalties do petróleo comoestavam até o momento nas áreas já licitadas, inclusive em 30% dopré-sal.
Pelo acordo, feito no relatório do deputado HenriqueAlves, os estados produtores ficariam com 25% das receitas obtidas coma cobrança de royalties do pré-sal, em vez dos 18% anteriormentepropostos.
Os municípios produtores teriam direito a 6% dosroyalties; os municípios afetados pelas operações de embarque edesembarque de petróleo ficariam com 3%, e todos os demais estados emunicípios da federação passariam a receber 44% dos royalties.
Em contrapar tida, os royalties da União seriam reduzidos de 30% para 22%.
Aemenda de Ibsen Pinheiro colocou abaixo o acordo com a oposição e abriuo apetite dos estados e municípios contra os estados produtores.
Esseacordo original foi alcançado graças ao trabalho conjunto dos trêsgovernadores de estados produtores, Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro,Paulo Hartung, do Espírito Santo, e José Serra, de São Paulo, e saiu deuma reunião no Palácio da Alvorada, onde os ministros das Minas eEnergia, Edison Lobão, e a chefe do Gabinete Civil, Dilma Rousseff,defenderam propostas semelhantes à do deputado Ibsen Pinheiro sobre adistribuição dos royalties do pré-sal.
Foi o governador JoséSerra quem sugeriu, obtendo o apoio dos governadores e do própriopresidente Lula, que não se mexesse na distribuição dos royalties numano eleitoral.
O presidente Lula, aliás, disse em entrevista nasua viagem ao Oriente Médio que já antevia que em ano eleitoral muitagente ia querer fazer gracinha com o assunto.
O ministroNelson Jobim, da Defesa, que também participou da reunião, redigiupessoalmente uma mudança no projeto do governo, que garantia que nadaseria alterado.
Mas sabia-se naquela reunião que o Congressopoderia fazer alterações. E mais que isso, que setores fortes dogoverno tinham entendimento distinto sobre a distribuição dos royalties.
Oministro Edison Lobão, por exemplo, chegou a ter uma discussão ríspidacom o governador Sérgio Cabral, já relatada aqui na coluna, em quegarantiu que havia conversado com ele sobre as alterações.
Nãoé verdade, reagiu Cabral, garantindo que já avisara ao ministro quenão aceitava a mudança da repartição dos royalties dos estadosprodutores.
Os três governadores tinham como objetivo centralnaquela noite garantir que a divisão dos royalties se mantivesseinalterada, o que conseguiram, até que a emenda Ibsen Pinheiroalterasse o acordo.
O governador Sérgio Cabral agiuemocionalmente o tempo todo, inclusive naquela reunião do Alvorada,quando teve que ser acalmado várias vezes por Lula e teve discussãotambém com o ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, quedefendia a mudança para o sistema de partilha, dando como exemplo desucesso a Líbia de Kadafi, arrancando uma risada de Cabral.
Depois,quando foi apresentado o projeto, o governador do Rio chegou a dizerque um grupo de parlamentares de vários partidos está com uma posturade como quem quer defender seu estado e quer roubar o Rio de Janeiro.Isso é um absurdo.
Quando, ao final de muitas idas e vindas, oprojeto do deputado Ibsen Pinheiro foi aprovado, Cabral chegou a chorarem público, e convocou uma passeata de protesto.
Sua decididadefesa dos interesses do estado pode lhe trazer reconhecimento doeleitorado, mas a confiança que depositou no presidente Lula, sem sercorrespondido, pode prejudicar sua imagem.
Até o momento, não tem demonstrado capacidade de negociação dentro do Congresso, se fiando muito no apoio do governo federal.
Ogovernador paulista, José Serra, que se envolveu no primeiro momento dadiscussão, saiu de cena no decorrer do debate, dando a parecer que adefinição da questão não interessava muito a seu estado.
A articulação paulista na Câmara foi pior que a do Rio, e muitos deputados, inclusive do PSDB, votaram a favor da emenda Ibsen.
Serrateve uma primeira reação inteiramente equivocada ao dizer que não sabiadetalhes da questão dos royalties, pois só lera pelos jornais, e teveque tentar recuperar a posição no dia seguinte, quando deu umadeclaração firme contra a alteração da distribuição, se reincorporandoà luta ao lado do Rio e do Espírito Santo.
Já a ministra Dilma Rousseff não ficou em cima do muro, mesmo correndo o risco de ir contra a maioria dos estados.
Diferentemente do presidente Lula, ela antecipou sua posição a favor da manutenção do sistema atual de divisão dos royalties.
Quandoo presidente Lula lavou as mãos e disse que cabia ao Congresso resolvera pendenga, ele já sabia que não tem muito a fazer.
Ou, como insinua o deputado Ibsen Pinheiro, não quer ter muito a fazer.
Todos os personagens dessa quase Secessão tupiniquim pagarão um preço político nas próximas eleições.