Título: Juros do dilema
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 20/03/2010, Economia, p. 30

ASelic não subiu, mas os juros bancários já subiram, e economistas debancos e consultorias apostam que a alta da taxa oficial não passa deabril. Será mesmo que tem que subir? O Brasil está há oito meses com amenor taxa de juros da história recente, mas mesmo assim ela éaltíssima se comparada com o resto do mundo, que continua na era dosjuros negativos.

O dilema do Brasil é este.

Quase 16 anos depois do plano deestabilização, após 10 anos de metas de inflação, o país continua comuma taxa de juros alta demais, e em qualquer descuido a inflação sobe.Dos Brics, é o que possui a maior taxa de juros real: 4%. A China temjuros reais de 2,5%; e a Rússia, de 1,4%. O Brasil não quer correr orisco que a Índia está correndo. Lá, a inflação está em 16%, eclaramente se acelerando nos últimos anos. Com isso, os juros reaisestão negativos em 11%. Comparando as taxas de 40 países, a consultoriaeconômica Up Trend concluiu que os juros da Índia são os maisfortemente negativos, porque a inflação é mais alta.

O risco éque a inflação se acelere ainda mais. Os juros reais baixos da Rússia,de 1,4%, também são causados pela inflação alta, que está em torno de7%.

Esse certamente não é um risco que o Brasil queira correr,dado o nosso passado inflacionário e o compromisso do país com ainflação sob controle. É tão grande esse compromisso que inflaçãosubindo traz mais risco eleitoral para o governo do que juros subindo.

Portanto, o BC se não elevar os juros por ter afinal cedido às pressões internas do governo estará errando duplamente.

Háuma divergência genuína sobre a natureza da inflação deste começo deano. Ela subiu fortemente agora. O IGP-10 acumulou em três meses 2,4%.Isso é assustador para quem tem uma meta de 4,5%. Mas os IGPs têmmovimentos mais nervosos, que não são necessariamente confirmados pelainflação ao consumidor.

Antigamente se dizia que os índices quetêm uma parte de preços do atacado seriam uma espécie de aviso prévioda inflação ao consumidor. O avanço da estabilização acabou com esseautomatismo.

A pressão do boom das commodities internacionaislevou os preços das matérias-primas a subir no Brasil no começo de2008. Em julho, o IGP-M acumulado em 12 meses chegou a 15%, e o IPCA,também em 12 meses, estava em 6,3%. Daí para diante, o IGP-M caiu eterminou o ano em 7,8%, enquanto o IPCA terminou o ano em 5,9%. Nãohouve o tal repasse. Em seguida, foi a vez de os IGPs despencarem eterminarem o ano passado em deflação, já o IPCA caiu e ficou em 4,3%.

Conclusão: os IGPs são mais voláteis e não são uma prévia dos índices ao consumidor.

Omistério que continua no Brasil é porque o país precisa de taxa dejuros tão alta para atingir o objetivo de evitar a inflação acima dameta, que é o mandato do Banco Central.

Houve um tempo em que omercado dizia que o BC tinha que pagar o preço da reputação, porqueninguém confiava que ele pudesse ter independência para decidir. Tantasbatalhas vencidas pelo Banco depois, poucos continuam a duvidar dadecisão independente.

O ex-presidente do Banco Central GustavoFranco, que entrevistei esta semana na Globonews, explica que a decisãodo Copom foi estritamente técnica. Houve divergências no diagnóstico, eo placar apertado da decisão seria uma indicação de que os juros podemsubir em abril. Quando perguntei se ele estava então convencido daautonomia do BC no atual governo, ele disse que sim, e que asreclamações públicas sobre a taxa de juros de outros setores do governosão normais, e exatamente por serem públicas não são pressões, seriamuma espécie de desculpas para o seu público. Luiz Chrysostomo, sócio daNeo Investimentos, também acha que o Banco Central decide autonomamente.

Portanto,se o BC tem reputação de independente, se a estabilização ocorreu hátantos anos, se o mundo inteiro está com juros baixos, por que o Brasilnão pode ter juros mais parecidos com o resto do mundo? A nossa taxabásica hoje está em 8,75%, mesmo sendo a mais baixa da nossa históriarecente, continua sendo muito alta na comparação com outros países.

Seráque está mesmo escrito que os juros terão que subir em abril? GustavoFranco acha que pode acontecer uma novidade boa em termos de inflaçãoque permita ao Banco Central adiar mais uma vez.

Chrysostomoacha que há uma pressão de demanda das famílias que pode manter ainflação subindo, mas admite que os incentivos de IPI estão sendoremovidos, e que os compulsórios voltaram a subir, retirando nospróximos dias cerca de R$ 70 bilhões da economia.

Além disso, a demanda externa continuará fraca já que a crise internacional ainda não foi resolvida.

GustavoFranco acha que, apesar de tanto tempo depois do início da nova moeda,ainda existem uma bactéria presente na economia brasileira,desequilíbrios fiscais crônicos, o peso de uma história muito longa deconvivência com inflação alta que fazem com que o Brasil permaneçasendo o campeão mundial dos juros altos. Pode ser que seja aindaherança desse passado, mas o fato é que já era tempo de o mercado dejuros brasileiros ser mais normal. Mais escandalosamente anormais sãoas taxas de juros cobradas pelos bancos, no crédito ao consumidor e àsempresas. Neste ponto mesmo é que o Brasil parece um E.T., tal adiscrepância entre as taxas dos outros e as nossas.