Título: Outra ameaça à liberdade
Autor: Nagib, Miguel
Fonte: O Globo, 31/03/2010, Opinião, p. 7

De acordo com a orientação que vem sendo seguida pelos tribunais, asações de reparação de danos (materiais ou morais) alegadamente causadospor matéria publicada na internet devem ser ajuizadas no foro dodomicílio do suposto ofendido.

Em razão desse entendimento, quese baseia no art. 100 do Código de Processo Civil, incontáveisindivíduos que exercem, habitual ou esporadicamente, a liberdade deexpressão e de informação jornalística por meio da internetencontram-se permanentemente expostos ao risco de ser processados emqualquer comarca do país, dependendo do domicílio de quem venha a sesentir ofendido ou lesado pela informação ou opinião divulgada.

Alémdisso, nada impede que, sendo vários os supostos ofendidos e diversosos seus respectivos domicílios, o insiautor seja processadosimultaneamente em mais de uma localidade, como aconteceu, em 2008, numdos casos mais notórios de abuso do direito de ação já registrados: porcausa de uma reportagem, a jornalista Elvira Lobato e a Folha deS.Paulo tiveram de responder a mais de 90 ações de indenizaçãoajuizadas por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus em todo opaís, de Santana, no Amapá, até Jaguarão, no Rio Grande do Sul. Não édifícil imaginar as dificuldades enfrentadas pela defesa do jornal e dajornalista.

Em 2008, o presidente da Força Sindical, deputadoPaulo Pereira da Silva, incomodado com o conteúdo de reportagenspublicadas nos jornais O GLOBO e Folha de S.Paulo, anunciou quesindicalistas ligados à entidade por ele presidida entrariam com maisde 20 ações contra esses jornais, em 20 estados do país. Segundoreportagem da Folha Online, o deputado teria dito que sua intençãonão era ganhar as ações, mas dar trabalho aos jornais: Pode perder,não tem problema. Vou dar um trabalho desgraçado para eles.

Meu negócio é dar trabalho para eles.

Nãoé nem ganhar. É só para eles aprenderem a respeitar as pessoas. Euestou fazendo apenas 20. Se não parar, vou fazer de 1.000 a 2.000 açõescontra eles no Brasil inteiro. Arrematou: A Igreja Universal vai serfichinha. Paulinho realmente sabe das coisas.

Ganhar essasações é, de fato, o que menos importa para quem se dispõe a ajuizá-las.O objetivo é punir e intimidar o responsável pelas supostas ofensas.

Parapunir, não é preciso vencer: basta obrigar a parte contrária a litigarfora do seu domicílio de preferência, em mais de uma comarca numpaís de dimensões continentais. Para intimidar, basta acenar compossível processo.

Tudo isso graças ao artigo 100 do Código de Processo Civil.

Eisque entra em cena o Supremo Tribunal Federal. Em outubro do anopassado, o STF decidiu se pronunciar a respeito da compatibilidadedesse dispositivo com o artigo 220, § 1º, da Constituição Federal,segundo o qual nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituirembaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquerveículo de comunicação social.

No jargão processual, o STF reconheceu a repercussão geral da questão. O caso está pronto para ser julgado.

Seo STF decidir que a aplicação do art. 100 do CPC ao gênero de demandasjudiciais ora examinado pode constituir embaraço à plena liberdade deinformação jornalística, o fórum competente para o julgamento dessasações passará a ser o do domicílio do réu. Do contrário, fica tudo comoestá.