Título: Em busca do lixo perdido
Autor: Bottari, Elenilce
Fonte: O Globo, 11/04/2010, Rio, p. 17

Equipe quer mapear antigos depósitos para descobrir quais viraram ocupações de risco

A avalanche que desceu no Morro do Bumba, em Niterói matando dezenas de pessoas e revelando toneladas de lixo abandonado onde fora erguida aquela comunidade despertou a atenção do público e das autoridades para a sujeira que, desde a chegada de Dom João, vem sendo jogada para debaixo do tapete. Novo vilão das chuvas, o lixo foi também o solo fértil para edificação de pelo menos oito bairros e 18 favelas da capital, em um estado que, nos últimos 40 anos, teve nos lixões o destino final de seus resíduos. Segundo registros históricos, onde hoje estão os bairros de São Cristóvão, Caju, Gamboa, Saúde, Santo Cristo, Cidade Nova, Ilha do Fundão e Manguinhos houve aterros sanitários públicos.

Preocupado em levantar a extensão do risco do passivo ambiental no Rio, que agora vem à tona com as chuvas, o secretário de Ciência e Tecnologia, Luiz Edmundo da Costa Leite, solicitou ao reitor da Uerj, Ricardo Vieiralves, o mapeamento da situação no estado, onde se estima que haja mais de 200 aterros sanitários inadequados, que foram abandonados ao longo dos anos sem qualquer controle. Dezenas deles foram, possivelmente, ocupados de forma irregular, dentro de processos que favelização que resultaram em comunidades como a do Morro do Bumba.

O Rio tem hoje um passivo ambiental muito grande que precisa ser objeto de estudos. Precisamos identificálo para depois analisar os riscos para a população e, então, criar projetos de remediação. É uma tarefa difícil, pois, em muitos casos, pode ter havido ocupação irregular onde havia lixões desativados. Isso porque a vegetação cresce por cima dos dejetos e, com o tempo, as pessoas esquecem o que havia ali e ocupam. E isso pode representar um risco grande para a população explicou o secretário de Ciência e Tecnologia

Ameaça não se restringe a morros

Segundo Luiz Edmundo, que é engenheiro especialista em recursos hídricos, o risco não está restrito aos aterros que viraram morros.

Um lixão onde passa o lençol freático também é risco para a saúde pública, devido à contaminação da água lembrou.

A primeira reunião multidisciplinar para o mapeamento das comunidades erguidas sobre esses passivos ambientais acontece nesta semana.

Segundo o reitor Ricardo Vieiralves, participarão especialistas em geologia, engenharia sanitária e história, além do Departamento de Recursos Minerais do Estado e de outras instituições.

Vamos precisar da ajuda de historiadores, com equipes de professores e alunos, levantando a história dessas regiões, para ajudar a mapear onde ficavam os lixões. A partir dessa identificação, serão feitos estudos sobre situação de risco de cada local. O solo feito de resíduos é extremamente instável e, com a chuva, vira um escorrega comentou o reitor.

Segundo Vieiralves, a meta inicial será identificar a situação na área metropolitana, mas depois o levantamento deverá seguir para outras regiões do estado, como Serrana, Sul e Norte Fluminense.

Na equipe multidisciplinar participarão também os especialistas do Departamento de Geologia da Uerj que já vinham realizando um mapeamento geológico para o Ministério das Minas e Energia um trabalho desenvolvido junto com o Serviço Geológico do Brasil para o Programa Nacional de Geologia (Pronagel). Segundo a sub-reitora de pós-graduação e pesquisa em Geologia, Mônica Heilbron, mesmo esse mapeamento sendo em escala de 1/1000, foi possível identificar no estado, várias áreas de aterro: Os aterros são tão grandes, que mesmo em uma escala de 1/1000, são visíveis no mapa. Por isso, tivemos que criar uma unidade para aterros. Um dos que aparece no mapa, é o aterro sanitário de Caxias comentou a pesquisadora.

Segundo ela, o mapeamento dos antigos lixões do estado permitirá a adoção de políticas públicas adequadas: Muitas vezes não é fácil levantar com precisão porque muitos desses lixões nunca foram licenciados.

Daí a importância da participação de historiadores no levantamento.

Especialista em resíduo sólido, o professor João Alberto Ferreira, do Departamento de Engenharia Sanitária da Uerj, lembrou que tradicionalmente nos últimos 40 anos a destinação final do lixo no estado são os lixões.

É de se pressupor que uma boa parcela desses aterros se perdeu.

Ao longo dos anos, os municípios fizeram seus aterros, que foram deixados de lado, sem qualquer cuidado.

Com o tempo, a vegetação cresceu e esses antigos depósitos de lixo acabaram ocupados. Seja em áreas planas ou em morros, eles trazem riscos de instabilidade, vazamento de gás metano e contaminação de água e de plantações. A população mais pobre, muitas vezes sem qualquer conhecimento sobre os riscos, é que ocupará essas áreas avaliou o professor.

O historiador Milton Teixeira lembra que o primeiro lixão oficial da cidade foi onde está hoje o Campo de Santana. Depois, a Cidade Nova: A cidade foi erguida sobre lixo e escombros. Entre os séculos XVII e XVIII, o lixo era todo jogado no Campo de Santana. Em 1808, com a chegada de Dom João e a elevação do Rio a Capital do Reino Unido, o príncipe-regente decretou que o lixo fosse depositado onde depois foi edificada a Cidade Nova. Era uma área pantanosa, e Dom João tinha medo que a carruagem caísse no pântano. Daí, passou-se a usar o lixo para aterrar a cidade.

Segundo o historiador, toda a região depois do canal do Mangue foi aterro sanitário.

O carioca, culturalmente nunca se preocupou em saber o que tinha embaixo de suas edificações. Talvez seja melhor assim. Ele poderia perder o sono ironizou Teixeira.

Aterros irregulares agravam os riscos

O assessor da Diretoria Técnica e Industrial da Comlurb, José Henrique Penido, defende o mapeamento dos lixões desativados do estado, mas lembra que tão grave quanto os lixões oficiais são os aterros clandestinos: Do lixo que recolhemos diariamente, 30% foi descartado pela população de forma irregular.

Segundo Penido, a produção diária de dejetos da cidade, fora o lixo industrial, é de 8.900 toneladas. Ficam de fora da conta o material descartado nos aterros clandestinos e o lixo jogado nas encostas e nos rios.

Infelizmente, a incivilidade é democrática.

Ricos e pobres jogam lixo nas encostas, nos rios e nas ruas.

Não sabem que esse lixo se voltará contra eles e custará muito mais caro para todos. É um absurdo que noções de saneamento não estejam na grade curricular do ensino fundamental.

Toda criança, rica ou pobre, deveria crescer aprendendo a cuidar do lixo alertou José Henrique.

Em todas as encostas que deslizaram na cidade Borel, Macacos, Prazeres, Rocinha, Turano e que provocaram dezenas de mortes, a quantidade de lixo misturado à lama denunciava a gravidade do problema, que cresce a cada ano e vem agravando catástrofes nas raras, mas previsíveis chuvas extremas do Rio.

Vítima de um deslizamento, o mestre de obras Ezequiel de Oliveira que perdeu amigos na tragédia concorda com a necessidade de se ensinar saneamento na escola: Não adianta dizer que nós somos os culpados. O serviço de Gari Comunitário parou de pagar há dois meses, mesmo assim, os moradores mantiveram a coleta funcionando.

Mas há sempre quem jogará lixo na rua. Falta educar a população para entender a importância de se manter cidade e encostas limpas