Título: Santa Catarina: verba de enchente em conta-gotas
Autor: Perboni, Juraci
Fonte: O Globo, 11/04/2010, Rio, p. 21

Quase um ano e meio depois da catástrofe, estado ainda tem a receber R$ 35 milhões do governo federal

FLORIANÓPOLIS. Passado quase um ano e meio das chuvas de novembro de 2008 em Santa Catarina, que deixaram 135 mortos, dois desaparecidos e muita destruição, o estado ainda aguarda o repasse de R$ 35 milhões dos R$ 360 milhões prometidos pelo governo federal para recuperar a infraestrutura pública nos municípios atingidos.

Outros R$ 340 milhões foram repassados ao estado para recuperar portos e rodovias.

Além da demora na liberação total das verbas prometidas, o valor ficou muito abaixo das necessidades, afirma o técnico da Defesa Civil estadual major Márcio Luiz Alves, na época diretor do órgão, que tratou da tramitação de projetos e da liberação de verbas junto à Defesa Civil Nacional.

Ele afirma que, só para os municípios, o valor deveria ser de mais de R$ 1 bilhão: A verba para este ou aquele município não está relacionada ao tamanho do dano. Na Medida Provisória 448, que previa recursos de R$ 1,6 bilhão para ajudar os atingidos pelas chuvas e para a prevenção de enchentes em todo país, destinou-se R$ 700 milhões para Santa Catarina, dos quais R$ 45 milhões para a Defesa Civil estadual de Santa Catarina e R$ 49 milhões para a de Salvador (BA), onde havia ocorrido uma enchente de menor proporção. O problema é que se trabalha sobre decisões políticas, partidárias. Politiza-se muito o desastre. E se o técnico não quiser liberar a verba, ele vai fazer exigências e dizer que o projeto não está certo. Isso, para nós, foi um dos maiores problemas.

O ser humano é o último a ser considerado.

Questão política teria acelerado verba O major citou uma situação recente de dois municípios da Grande Florianópolis, São José e Antônio Carlos, que pediram verba para recuperar estragos provocados por fortes chuvas, há cerca de 15 dias. Para o primeiro, que tem no cargo de secretária de Assistência Social Lurian da Lula Silva, filha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o repasse teria sido autorizado.

Já o município de Antonio Carlos ainda está na fila. Na prefeitura de São José, a assessoria de imprensa negou que a verba tenha sido liberada e garantiu que o pedido ainda está em análise, pois tudo segue de acordo com as exigências da lei.

Em outros estados, as verbas também parecem seguir caminhos tortuosos. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) constatou que a distribuição de verbas pela Secretaria Nacional de Defesa Civil vinculada ao Ministério da Integração Nacional entre 2004 e 2009 não obedeceu a critérios técnicos.

Segundo a auditoria, o Rio de Janeiro e seus municípios receberam apenas 0,65% da verba.

Já o estado da Bahia, terra do então ministro Geddel Vieira Lima, foi o mais favorecido. Em 2008 e 2009, a secretaria transferiu R$114,2 milhões para os municípios baianos, o que corresponde a 64,6% do total do país. Já os fluminenses receberam apenas R$1,5 milhão.

Na primeira visita a Santa Catarina durante a catástrofe em 2008, Lula disse que seria editada uma MP, a 448, com verba de R$ 1,6 bi. Mas, desse valor, só R$ 700 milhões foram para os catarinenses, dos quais R$ 130 milhões para recuperar rodovias federais e R$ 280 milhões para obras do Porto de Itajaí.

Blumenau só recebeu R$ 24 milhões até agora O então governador Luiz Henrique da Silveira, que renunciou ao cargo na semana passada, preferiu dizer, segundo sua assessoria, que a demora de seis meses para repassar o maior volume de recursos para o estado é normal pelas exigências da legislação.

Blumenau, no Vale do Itajaí um dos mais atingidos, com mais de 40 mortos , contabilizou R$ 800 milhões em perdas somente com infraestrutura pública, sem o valor das duas mil casas destruídas.

Mas a prefeitura de Blumenau só conseguiu encaminhar ao governo federal projetos para investimentos federais no valor de R$ 209 milhões. Desse total, somente R$ 24 milhões chegaram ao município até agora, garante a prefeitura.

Os R$ 24 milhões que chegaram a Blumenau até agora foram suficientes somente para desobstruir algumas ruas, galerias e pontes disse o secretário municipal de Assistência Social, Mário Hidelbrandt. É tudo problema da burocracia. Ficaram dois meses em Brasília discutindo se a verba seria para recuperação ou prevenção, porque só havia recursos para a prevenção. Então não podia ser para recuperação. Mas era o que nós precisávamos. O presidente Lula disse aqui na cidade, logo após a tragédia, que não iria faltar dinheiro. Mas não foi isso o que se viu. Tem muita obra de infraestrutura a ser feita.

E o município não tem recursos.

Afinal, não ficam 70% dos impostos em Brasília? Em Gaspar, município vizinho a Blumenau, a situação não é tão diferente. Mais de 54 mil pessoas (quase a totalidade da população) foram atingida, mas os recursos para reconstrução estão longe do ideal. A coordenadora da Defesa Civil municipal, Mari Inez Theiss, disse que o município recebeu somente R$ 9 milhões até maio de 2009. Muito abaixo dos R$ 700 milhões do levantamento das perdas. Por isso, obras importantes ainda esperam por verbas. Ela lamenta a falta de critérios na distribuição das verbas. Segundo ela, alguns municípios com menores danos recebem mais.

O morro onde está a estação de tratamento de água de Gaspar precisa de obra de contenção, mas só o projeto custa R$ 50 mil. Não temos esse dinheiro.

Sem as obras, qualquer chuva interdita ruas.

Técnico: Rio terá dificuldade para receber verba No caso dos estragos provocados pelas chuvas às propriedades dos moradores, o poder público pouco faz. A MP 448 destinou R$ 8 milhões para a habitação. O suficiente para construir 600 casas. Mas, no estado, as cheias de 2008 destruíram pelo menos seis mil moradias. Quase nada está pronto. Gaspar usou parte da verba, R$ 2 milhões, para comprar o terreno que vai permitir a construção de 170 residências, todas doadas. Blumenau adquiriu terrenos com R$ 8 milhões arrecadados em doações feitas pelos brasileiros.

Além disso, a população recorreu ao programa Minha Casa Minha Vida para poder ter um teto. Serão construídas 1.925 casas para as pessoas que ainda estão em abrigos ou na casa de parentes e amigos.

O major Márcio Luiz Alves prevê que o Rio de Janeiro vai passar pelas mesmas dificuldades que já enfrentaram Santa Catarina, São Paulo, Minas Gerais e Maranhão: a demora na solução do problema.

Os estragos em Santa Catarina não têm precedentes e nada mudou após a tragédia de 2008. Não se pode atender essas ocorrências com medidas provisórias. É preciso ter recursos reservados para isso. O Fundo Nacional da Defesa Civil e o Fundo de Calamidade não têm verbas disponíveis hoje.

Alves também defende a educação para a percepção do risco. Para ele, não adianta dizer que tal lugar é área de risco.

O morador, o prefeito, o secretário e o vereador precisam entender, conhecer por que aquele determinado lugar não pode ser ocupado.

As obras diminuem a possibilidade de desastres, mas o que vai prevenir são as mudanças de cultura