Título: Medo à margem do Rio Xingu
Autor: Paul, Gustavo
Fonte: O Globo, 11/04/2010, Economia, p. 27

Belo Monte preocupa agricultores, ribeirinhos, pescadores e índios

Projetada para ser a maior usina hidrelétrica brasileira (Itaipu é binacional), que ficará situada no mais extenso município do país e com o mais caro orçamento do setor elétrico, Belo Monte ainda não conseguiu o mínimo: vencer o medo da população em torno dela. O trabalho de divulgação feito nos últimos anos, via edição de cartilhas e visitas às comunidades locais, não foi suficiente para vencer a desconfiança de ribeirinhos, pescadores, agricultores, índios e até dos moradores de Altamira, a cidade-polo da região, em torno das promessas feitas pelo governo federal e a Eletronorte, que coordena esse trabalho.

Essa desconfiança vem acompanhada, principalmente, pelo desconhecimento do que será Belo Monte e seus reais impactos.

O complexo da usina, cujo leilão está previsto para o dia 20, situa-se em um trecho onde o Rio Xingu faz uma curva acentuada, cercado ora por floresta densa, ora por propriedades rurais. As cerca de 2,8 mil pessoas que habitam essa área temem perder o meio de vida com que se acostumaram nos últimas décadas, ao sabor dos regimes de cheia e vazante do rio.

São cerca de 150 quilômetros onde haverá dois tipos de impacto. Rio abaixo, um reservatório de 516 quilômetros quadrados de água vai se formar, inundando parte de Altamira e núcleos rurais. Rio acima, 40 quilômetros distante de Altamira, depois da maior das três represas a serem construídas, a vazão do rio vai reduzir. Nessa região, chamada de Volta Grande, o leito pedregoso e acidentado do Xingu, que só emerge no período de seca, ficará exposto permanentemente.

Apesar da garantia dada pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de que, nesta área, a vazão não será nunca inferior ao volume de água medido no período de seca, os moradores temem que a realidade seja bem pior. As 20 famílias indígenas que vivem na aldeia Arara da Volta Grande, a mais distante de Altamira, acreditam que a redução da vazão do rio irá isolá-los de vez do resto do país.

Vivendo principalmente à base da pesca e dependendo do rio como meio de transporte, os moradores não sabem o que esperar. O líder local, José Carlos Arara, de 30 anos, argumenta que os peixes vão se concentrar em poços ao longo do canal esvaziado do Xingu, o que atrairá outros pescadores da região, gerando uma disputa pelo alimento, que hoje não existe. Além disso, ele é irônico ao comentar as possibilidades futuras de locomoção, com menos água: Vamos ter de pular de pedra em pedra ou colocar roda nos nossos barcos diz Arara, que fala com rancor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com quem esteve em junho passado em Brasília, num encontro que rendeu uma fotografia na parede, promessas e um opositor. Ele disse que Belo Monte não irá repetir os erros de outras hidrelétricas.

Ele é um mentiroso. Não vou votar em quem ele indicar.

Na outra margem do rio, a perspectiva de ter de conviver permanentemente com pedras demais e água de menos gerou um racha da aldeia Paquiçamba, de índios Juruna.

Das 83 pessoas que moram na aldeia, localizada em um braço secundário do Xingu, a metade decidiu se mudar para outra área da reserva, a alguns quilômetros da atual e de frente ao canal principal. Comandados pelo futuro cacique Giliard Jacinto Juruna, de 28 anos, os índios vão montar a aldeia Moratô.

Aqui não vai dar para navegar. Se ficarmos, Belo Monte vai atrapalhar nossa vida diz o futuro cacique

Não quero ter de recomeçar

O atual cacique, Manuel Juruna, de 69 anos, há 30 no comando local, continuará em Paquiçamba ele é um dos poucos que abertamente não teme os efeitos da usina no seu cotidiano. Manuel Juruna acredita nas promessas da Eletronorte: Não sou nem contra nem a favor da usina, mas sei que ela é inevitável. Não acredito que eles (da Eletronorte) estão nos enganando disse, enquanto preparava farinha de mandioca para venda.

O exemplo de outras usinas é o fantasma que assombra os nativos.

Na localidade da Ressaca, um povoado de 500 pessoas que vivem da pesca, do garimpo e da agricultura, o comerciante Antonio de Souza Reis, de 44 anos, dono do Mercadinho Pegue e Pague, cita a usina de Tucuruí, também no Pará: O pessoal que foi afetado pela usina nos contou que ninguém cumpriu as promessas feitas. Os técnicos chegam, contam histórias bonitas e depois nada. E para a gente ainda não deram nenhuma explicação de como ficará nossa situação.

O agricultor Antonio Francisco Madeira, que diariamente toma banho e se barbeia no leito do Xingu, terá que andar mais de 100 metros para poder se lavar. Ele também não acredita em promessas. Uma delas é a melhoria da estrada de 70 km ligando Ressaca a Altamira.

Em outro trecho do Xingu, abaixo da barragem, um pequeno grupo de pescadores teme o paredão de concreto que interromperá o tradicional fluxo de barcos até Altamira e complicará o transporte do peixe.

Tenho medo porque essa usina com certeza vai prejudicar os pescadores.

Nunca parou ninguém aqui para falar como a gente vai vender nosso peixe reclama o pescador Antonio Rodrigues Soares, de 64 anos.

Na área a ser inundada, o barqueiro Laurindo de Freitas Neto, de 69 anos, da localidade Santa Luzia, vive transportando crianças para a escola rural.

Recentemente, colocou numa árvore uma placa com os dizeres Somos contra Belo Monte, doada por uma ONG que ele não lembra o nome.

Freitas reclama de ter de sair de um lugar onde mora há mais de 30 anos e da falta de informação. Por se situar na área da barragem, foi informado que terá de sair do local.

Ninguém sabe qual será a indenização, nem quando será isso.

Não quero ir embora, não quero ter de recomeçar tudo de novo afirma.