Título: No Brasil e na África do Sul, idosos com renda
Autor: Almeidfa, Cássia; Rodrigues, Jorge Luiz
Fonte: O Globo, 11/04/2010, Economia, p. 31

Mais velhos ganham respeito em ambos os países, que têm os maiores programas de transferência de benefícios do Hemisfério Sul

RIO e JOHANNESBURGO. Na camisa que ele veste está escrito: Mitos do futebol. Glinton Colefe garante que sua habilidade com a bola nos pés não viajou o mundo por causa da trágica herança de quase meio século do apartheid, regime com o qual conviveu durante 46 de seus 68 anos. O mito, ele carrega até no apelido, Vera, the Ghost, justificado pela fama de atacante veloz, que se tornava invisível aos olhos dos marcadores.

Associação engraçada à lenda de uma mulher que vagava pelas ruas de Pretória e causava acidentes. Hoje, garante o seu sustento e o da família com um benefício dado pelo governo.

Não é muito, mas ajuda.

Tenho cinco filhos e sete netos. O caçula é casado. Ele e a mulher moram comigo. Está empregado em um supermercado, mas a pensão à velhice é sempre um dinheirinho a mais diz Glinton Colefe, que mora em Soweto, a mais conhecida township (distrito) sul-africana e símbolo da luta contra o apartheid.

No Brasil, Vênus Arossa de Almeida, de 86 anos, fez sua vida na família. Cuidar das filhas e do marido é o seu trabalho desde os 23. Nunca trabalhou fora ou contribuiu para a Previdência. Ganha R$ 600 ao mês de pensão pela morte do marido, dentista, que contribuiu com a Previdência a vida toda. Hoje, ela mora com a filha em Copacabana e continua a cuidar da família e da casa: Cuidar dos filhos é um trabalho gostoso. O que ganho é pouco, não dá para pagar o plano de saúde. Há até pouco tempo pegava os remédios no posto.

Mas hoje tenho que comprá-los.

As rotinas de Colefe e Vênus têm pouco em comum. Mas eles guardam uma semelhança que nem imaginam. A transferência governamental ajuda a garantir a sobrevivência de ambos.

Pensão na África do Sul era só para os brancos mais pobres Com a maior cobertura previdenciária da América Latina 76% dos que têm mais de 60 anos recebem algum tipo de transferência do governo , a situação do idoso brasileiro mudou nos últimos 20 anos. E essa mudança se refletiu na satisfação dos idosos com a vida, segundo pesquisa inédita desenvolvida simultaneamente no Brasil e na África do Sul, os dois países com os maiores programas de transferência de renda para idosos do Hemisfério Sul. O estudo mostra que 60,7% dos brasileiros estão satisfeitos com a sua situação financeira. Na África do Sul, a pesquisa apontou que o dinheiro é usado ainda no sustento dos netos. Situação que deve melhorar, pois o governo estenderá o benefício a crianças.

O nível de satisfação é alto.

O idoso se sente mais respeitado na família com dinheiro no bolso.

A segurança financeira passa a ser um ativo na família afirma João Saboia, diretor do Instituto de Economia da UFRJ, que realizou a pesquisa.

Hoje, além das rugas do tempo, a vida trouxe transformações na vida de Colefe, após anos de segregação. Ele gostaria de jogar o futebol de hoje, sem fronteiras ou separações. Dinheiro, o esporte não lhe deu. Mas é um entre milhões de sul-africanos que passaram a ter o dia a dia melhor através de projetos de transferência de renda. Nisso, a África do Sul que ainda tem 42% de sua população vivendo com menos de US$ 2 por dia anda marcando gols. Principalmente na velhice dos que tiveram quase nenhuma oportunidade durante o apartheid.

A Constituição de 1988 afastou no Brasil um temor dos estudiosos há 20 anos, quando velhice era sinônimo de pobreza.

Afinal, sem condições de trabalhar, de onde viria a renda? A Constituição estendeu a aposentadoria também aos trabalhadores rurais mesmo que não tivessem contribuído. Além disso, os idosos pobres, mesmo que não tenham contribuído, recebem um salário mínimo.

A pesquisa identificou que 95% não tiveram dificuldades para receber o benefício, seja ele de que natureza for diz Saboia.

A Previdência Social contou 27 milhões de benefícios (aposentadorias, pensões e transferências sociais) em fevereiro.

Pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e estudiosa das questões dos idosos no Brasil, Ana Amélia Camarano diz que a África do Sul copiou o modelo brasileiro: No Brasil, há uma cobertura quase universal. Acima de 80 anos, 90% recebem algum benefício.

E isso deu outro status na família. Antes, o idoso dependia da família, hoje é um provedor.

Pesquisa feita em Belo Horizonte constatou que 14% da renda dos idosos são gastos com uniforme e material escolar dos netos.

A pensão social, originalmente, foi introduzida na África do Sul para ajudar os brancos mais pobres.

Passou a ser gradualmente oferecida a todos os sul-africanos.

A paridade do valor do pagamento a todos os pensionistas foi atingida antes da chegada da democracia, em 1994.

Hoje, muitos chefes de família dependem das pensões na falta de emprego de seus familiares.

A África do Sul tem um dos mais avançados programas de transferência de renda do mundo, o que tem melhorado a vida de diversas famílias, chegando a beneficiar filhos desses idosos e até netos, num país com desemprego alto diz Valerie Moller, titular do Instituto de Pesquisas Sociais e Econômicas da Universidade Rhodes, e um dos nomes respeitados do país em estudos de qualidade de vida.

Na pesquisa desenvolvida pelos professores sul-africanos e brasileiros, quatro entre cinco pensionistas ouvidos nas províncias de Eastern Cape e Western Cape disseram usar o dinheiro da pensão à velhice não apenas para eles.

A entrada em vigor de um misto de pensões, como a da criança, vai melhorar a vida dos idosos, que usam as pensões para sustentar os netos. Isso muda a dinâmica das famílias pobres diz Valerie Moller.

No Brasil, maioria é frustrada com educação Mais de mil idosos brasileiros foram entrevistados em Ilhéus, na Bahia, e em Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João de Meriti. A violência ainda é a grande preocupação: Todos temem o tráfico e as milícias. A pouca educação é a grande frustração dos idosos.

Vênus é um exemplo disso.

Estudou apenas até a primeira série do antigo primário. Logo após, foi afastada da escola para aprender a cozinhar, costurar e outros afazeres domésticos. Era a educação para o casamento.

Com poucas escolas, chegou a ganhar uma bolsa de estudos.

Com seis irmãos, ficou difícil para a família arcar com os custos de uniforme e material escolar: Queria ter estudado mais, trabalhado fora e ido a mais bailes. Gosto muito de dançar