Título: Do tribunal ao cárcere, sem medo do regime
Autor: Costa, Mariana Timóteo da
Fonte: O Globo, 11/04/2010, O Mundo, p. 35

Entidades criticam prisão de magistrada acusada de receber propina para soltar banqueiro

Das 600 mulheres que se encontram detidas em Los Teques, 24 foram condenadas pela juíza María Lourdes Afiuni, até dezembro de 2009 titular de um tribunal em Caracas. No dia 10 daquele mês, Afiuni concedeu liberdade condicional ao banqueiro Eligio Cedeño, um desafeto de Hugo Chávez que financiava políticos de oposição e encontrava-se em prisão preventiva há três anos sem ter sido julgado por acusações de corrupção.

Afiuni conta que baseou sua decisão na ausência de provas e no fato de a ONU considerar a detenção arbitrária.

Logo depois de Cedeño deixar do tribunal hoje ele está nos EUA a juíza foi detida sob acusação de ter recebido US$ 8 milhões para soltá-lo.

Nunca tive conta no exterior, vasculharam contas de minha família aqui, o dinheiro não existe. Enquanto isso, me viro para manter minha sanidade mental. Há quatro meses não saio desta cela, não vejo o sol relata a juíza de 46 anos, cujo caso foi veementemente condenado e classificado como prisão política pela ONU, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), pela Anistia Internacional e pela Human Rights Watch, entre outras entidades.

A cela tem 4 metros de comprimento por 2 de largura. Pelo fato de ter privado outras detentas de sua liberdade no passado, Afiuni recebeu várias ameaças de morte uma vez tentaram queimála viva. A saída é nunca deixar sua cela, não participar de nenhuma atividade com outras presas, como aulas de cerâmica, música e exercícios físicos. Seu contato com o mundo se limita às visitas de seus amigos e familiares, semanalmente nas manhãs de quarta-feira e domingo. A filha Geraldine uma bela jovem de 17 anos, conta a juíza é a mais afetada.

Sempre fui mãe solteira, ela estava acostumada comigo sempre ao seu lado.

Além do mais, está numa fase complicada, que é a adolescência, precisa de mim.

Outro problema é o dinheiro: não podem cassar meu título de juíza até eu ser julgada, mas suspenderam o meu salário diz a magistrada.

Ela diz temer por sua segurança. A família, conta seu irmão mais velho, Nelson Afiuni, recebe a ajuda de três advogados que tentam transferi-la para prisão domiciliar em Caracas, pelo menos até seu julgamento, que ele nem sabe quando ocorrerá. Nelson esteve em Washington na semana passada, onde se encontrou com integrantes da CIDH.

Todos ficaram emocionadíssimos com o caso, dizem que nunca viram nada parecido no mundo. Uma juíza, uma servidora pública, presa como uma deliquente, sem prova nenhuma contra ela, sem ter sido julgada. A Justiça e a Venezuela estão corrompidas protesta Nelson, relatando que a casa dele e as do resto de sua família foram revistadas por agentes. Minha irmã sempre diz uma frase: Para ser bom, é preciso não ser covarde, e tentamos aplicá-la em nosso cotidiano.

A magistrada espera com paciência uma mudança. A voz é calma, mas ela conta que às vezes fica muito irritada, e até revoltada. Mas aí reza e procura se distrair, basicamente lendo: recentemente, foi a biografia do Dalai Lama. Lê a revista de celebridades Hola, jornais, romances, e já devorou acho que todos os livros de autoajuda que existem, além de obras dedicadas ao Direito.

Anda muito interessada em aprender mais sobre Direito Penal Internacional.

Mas chega um momento em que ler por várias horas cansa, e lamento não poder ver uma televisão nem acessar a internet. Aqui tudo isso é proibido.

Pelo menos conseguiu autorização para colocar uma tranca em sua cela o que anda me garantindo mais segurança e me fazendo dormir um pouco melhor pintar o ambiente, que antes era todo manchado de sangue; arrumar a cama e o banheiro.

Mesmo passando por tanta dificuldade, Afiuni não se arrepende do que fez porque avalia a detenção do banqueiro que libertou como arbitrária. Como a dela? Sim, como a minha e de todos os outros presos políticos de Chávez. Já sabia que a Justiça estava se politizando na Venezuela. Mas nunca imaginaria que seria presa por fazer meu trabalho de forma independente e de acordo com minha consciência.

Além dela, recentemente foram presos o político Oswaldo Álvarez Paz, depois de comentar na TV uma investigação realizada na Espanha que mostra supostas ligações entre autoridades venezuelanas e grupos como o ETA e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc. Acusado de dar declarações que incitam a instabilidade pública, o julgamento do opositor de Hugo Chávez ainda não foi marcado. O presidente da TV Globovisión, Guillermo Zuloaga, chegou a ser detido sob acusações semelhantes, mas responde ao processo em liberdade. Já o deputado Wilmer Azuaje, que denunciou uma série de irregularidades e corrupção envolvendo a família do presidente, foi detido, perdeu sua imunidade parlamentar, e será julgado em liberdade. Há pelo menos 30 outros casos semelhantes ocorrendo atualmente no país.

Jogar uma juíza na prisão por estar fazendo seu trabalho, e tomar uma decisão que passa por cima de leis venezuelanas e internacionais não é algo que se espera numa democracia que funcione criticou, na última semana, José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da Human Rights Watch. Mais uma vez o governo Chávez mostrou seu desrespeito e seu desprezo pelo princípio da liberdade judicial.

Vivanco ainda se mostra preocupado devido ao contexto da detenção de Afiuni e da dramática erosão da independência jurídica da Venezuela de Chávez, e diz achar muito difícil, que a juíza tenha um julgamento justo.

María Lourdes Afiuni diz ter esperança, mas confessa confiar mais na pressão internacional do que nos trâmites da Justiça de seu país. A palavra que melhor define seu estado de espírito, ela diz, é decepção.