Título: Quem dá as cartas
Autor: Ligia Bahia
Fonte: O Globo, 13/04/2010, Opinião, p. 7

A Confederação Nacional de Saúde, que congrega os proprietários de estabelecimentos privados da saúde e que contesta judicialmente o ressarcimento ao Sistema Único de Saúde, apresentou suas demandas por mais isenções fiscais.

Os mesmos empresários que não querem devolver aos cofres públicos as despesas com a assistência prestada a clientes de planos de saúde pela rede SUS pretendem pagar menos impostos.

Chama atenção a oportunidade de apresentação da proposta de reativação de políticas de saúde baseadas em renúncia fiscal. As cartas foram jogadas às claras e no momento certo. A exposição de motivos sobre o suposto excesso de carga tributária setorial ocorreu no Congresso Nacional, exatamente no inicio da corrida presidencial. Segundo a CNS, seria tudo muito simples e unívoco: o alívio da carga fiscal diminui preços, logo mais brasileiros poderiam consumir serviços de saúde e medicamentos. Mas não foi esse o caminho trilhado pelos países desenvolvidos. Por quê? Em primeiro lugar, existe uma longa distância entre a intenção de fornecer consultas, exames, internações e terapias mais baratas e o que se verifica na prática. Se fosse fácil, seria de se esperar que os preços de hospitais filantrópicos de ponta, como o Einstein, Sírio e Libanês, Oswaldo Cruz protegidos por dispositivos tributários, se tornassem acessíveis aos de menor renda. Tanto as mudanças na estrutura demográfica e no perfil do processo saúde-doença quanto as características singulares da inovação tecnológica projetadas em determinados arranjos institucionais estimulam a elevação dos preços.

A segunda ordem de motivos para a vigência de um ordenamento distinto daquele apregoado pela CNS é a efetivação de projetos nacionais para os sistemas de saúde. Estratificação, discriminação e privilégios são antônimos de coberturas abrangentes e qualidade de atenção. Portanto, os incentivos às empresas, sem as devidas amarras à ampliação de coberturas e melhoria das condições de saúde, resulta no que assistimos diariamente: concentração do conhecimento especializado e dos meios diagnósticos e terapêuticos em poucos lugares e acessíveis a poucos.

Para reverter essa tendência, o caminho é outro. A fórmula, 45% de gastos públicos, 55% privados e 25% de cobertura de planos de saúde, sobre a qual se estrutura o sistema de brasileiro, é incompatível com a garantia do direito à saúde. Em países com sistemas universais, como Inglaterra, França, Canadá, os gastos estatais representam pelo menos 70% das despesas com saúde.

Pesquisa do IBGE (Um Panorama da Saúde no Brasil) registra avanços: muitos estão cadastrados no Programa de Saúde da Família e a cobertura de mamografias aumentou. Desvela também a permanência de imensas dificuldades.

As proporções relacionadas com as formas de pagamento dos serviços utilizados (56% SUS; 26% planos de saúde e 18% pagamento direto) questionam a apressada aritmética de vários analistas e executores de políticas sociais. Não há uma porta aberta de ingresso no SUS para 74% da população sem vínculo com planos privados de saúde.

Se subtrairmos da soma da implantação de unidades públicas de prontoatendimento, as deduções e isenções fiscais e o repasse direto de recursos públicos para empresas privadas de saúde, encontraremos como resultado um sistema fragmentado, distante dos objetivos. A proposição da CNS, ao embutir a promessa de ampliar o gasto privado com saúde, agravaria o problema.

Os denominados gastos catastróficos com saúde, aqueles que penalizam os orçamentos domésticos, devem ser evitados, exatamente para assegurar que o atendimento à saúde independa das condições diretas de pagamento. Portanto, as cartas já postas à mesa pressupõem que andaremos na contramão dos sistemas universais, ampliando os gastos privados com saúde.

As possibilidades para virar ou pelo menos embaralhar o jogo dependem de inúmeras circunstâncias, entre as quais a composição das coalizões em torno das candidaturas presidenciais. Quem tem maior renda, é saudável e está inserido profissionalmente inclina-se à preservação e até expansão da privatização.

Não foi à toa que Barack Obama valeu-se de articulações com americanos desempregados, portadores de problemas crônicos e graves, profissionais de saúde, parlamentares, juristas e empresários preocupados com a elevação dos preços dos planos privados, para levar adiante a reforma no seu país.

LIGIA BAHIA é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.