Título: Emergência e estratégia
Autor:
Fonte: O Globo, 19/04/2010, Opinião, p. 6

Baixadas as águas da tragédia que custou a vida de quase três centenas de pessoas e deixou milhares ao desabrigo no Estado do Rio, o poder público ainda está preso a ações emergenciais para minimizar o infortúnio das vítimas das enchentes. É compreensível.

As chuvas do início do mês deixaram um rastro de destruição que, de fato, implica despender esforços de curtíssimo prazo para dar conta do desafio de reparar danos.

Mas, se há muito o que fazer no plano da emergência, que isso não seja a senha para o descuido com outro viés da tragédia ¿ o da necessidade de estabelecer programas estratégicos que, no futuro, preservem a população de dramas evitáveis.

Entre estes, o soterramento de famílias inteiras, vítimas da leniência ou, no extremo oposto da prevaricação, do estímulo de autoridades, somados ao oportunismo daqueles que, de olho em dividendos eleitorais, defendem ocupações em áreas de risco e a favelização como suposta alternativa ao déficit habitacional.

As águas de abril, infelizmente ao custo de vidas, deixaram evidente ¿ por inúmeras vezes denunciado em alertas da imprensa e de especialistas em urbanismo ¿ o tamanho do perigo da ocupação desordenada de morros e outras áreas de risco.

O estado sofre, por décadas, com uma falácia cevada pelo populismo fisiológico de governantes que, em vez de criar programas habitacionais e investir em infraestrutura, enveredaram pelo caminho fácil do incentivo à ilegalidade, de retorno político imediato.

Como era previsível, a fatura de tal desapreço pela qualidade de vida de uma parcela considerável da população acabaria chegando mais uma vez. Cabe agora às autoridades contabilizar prejuízos, materiais e em vidas perdidas, e começar a planejar de verdade o futuro urbanístico do Rio.

É incontestável que a remoção de favelas, inchadas ante a complacência do poder público, não pode mais ser termo proibido a governantes. A tragédia deste mês não deixa espaço para novas contemporizações.

Há comunidades inteiras vivendo sob risco, à parte os agravos ao meio ambiente decorrentes da degradação de áreas preserváveis.

A ideia de que esse tipo de ocupação constitui opção a déficits de moradias só está inscrita nas cartilhas daqueles que, no fundo, não querem resolver a sério os problemas habitacionais e tampouco se importam com a qualidade de vida dos que moram em barracos sem as mínimas condições de segurança e salubridade.

A estes, interessam apenas os dividendos políticos do fisiologismo.

O combate ao problema pressupõe ações de desfavelização de áreas já ocupadas. É política a ser elaborada urgentemente, para prevenir a repetição do drama atual. Mas tal programa precisa ter substância estratégica.

Às medidas em curso, tópicas em razão da emergência, deve proceder um plano de estímulo à construção de imóveis populares em regiões beneficiadas por intervenções governamentais nas áreas de infraestrutura, transportes e serviços. Se não, correse o risco de remover por remover, que é o equivalente, como na anedota, a tirar o sofá da sala. Ou vive-se o perigo mais grave de, no futuro, o Rio voltar a chorar a perda de vidas desamparadas pelo poder público e exploradas por demagogos..