Título: Avançar na defesa civil
Autor: Porto, Marcelo Firpo; Fernandes, Valcler Rangel
Fonte: O Globo, 20/04/2010, Opinião, p. 7

Aos poucos, cidades como o Rio de Janeiro e Niterói começam a voltar à normalidade após a tragédia. Montanhas de lixo e lama retiradas das ruas, mortos enterrados e a mídia passa a destacar outras manchetes nos noticiários.

Mas a principal tragédia para a sociedade é retornar ao estado latente de ¿anormalidade normal¿ ou do ¿desastre cotidiano¿ em que nos encontrávamos antes das chuvas. Quem sabe a lentidão do trabalho de limpeza e resgate no Morro do Bumba nos ajude a manter viva a memória do desastre e favoreça um debate público mais frutífero sobre suas causas. Além da solidariedade, o esforço coletivo deveria ser o do aprendizado: evitar que o esquecimento nos impeça de tirar lições importantes do que devemos aprender e transformar para melhor enfrentar as inevitáveis chuvas que ocorrerão no futuro.

Uma primeira lição, ensinada por vários estudiosos do campo dos desastres e da saúde ambiental, é ¿desnaturalizar¿ o desastre provocado pelas chuvas, que não é natural, e sim social. Allan Llavel, um dos maiores especialistas em desastres da América Latina e que destrincha nossas vulnerabilidades, faz uma analogia irônica com o médico legista que define como natural a morte de um homem que levou dezessete punhaladas.

Após protestos, o médico justifica seu laudo dizendo: ¿afinal de contas, era natural que ele morresse após tantas punhaladas.¿ Índios certamente já conviviam com enchentes nos territórios no entorno da Baía de Guanabara antes da colonização, mas a tragédia atual é fruto de uma longa história de nossa sociedade que explica a formação das cidades brasileiras, das periferias urbanas e das áreas de risco.

Neste ponto podemos tirar uma segunda lição: num país de intensas desigualdades sociais tanto as responsabilidades como as consequências não podem ser injustamente atribuídas ou diluídas. Sim, todos temos responsabilidades na questão do lixo, mas isso não deveria servir de argumento para discursos genéricos que atribuem a todos, a ninguém (a ¿natureza¿) ou então aos moradores das favelas e áreas de risco a culpa do problema.

As populações mais pobres jamais tiveram a oportunidade de participar de programas habitacionais, sistematicamente focados nas elites e classes médias da cidade formal. Tratase, portanto, de uma histórica injustiça social e ambiental que precisamos reverter. Programas de remoção que desconsiderem esta dimensão reforçarão injustiças e apenas deslocarão os territórios do desastre.

Outra lição fundamental diz respeito ao forte caráter intersetorial e interdisciplinar do problema, e à necessidade de avanço profissional e acadêmico da Defesa Civil no país. Ainda influenciadas por uma visão militarista, frequentemente as Defesas Civis estaduais e municipais não possuem um espaço de formação profissional e acadêmico que permita melhor preparar suas instituições para o importante trabalho de investigar, prevenir e atuar nos desastres. Com isso, ainda impera uma visão imediatista e vulnerável diante de pressões indesejáveis.

Para complicar, a coragem e dedicação de bombeiros e voluntários são prejudicadas pela falta de profissionalismo e oportunidade de crescimento profissional e acadêmico neste campo, o que facilita o uso com finalidades políticas de cargos na administração pública.

Para reverter este quadro, a Fiocruz, associada à UFF, à UFRJ e à Secretaria Nacional de Defesa Civil, propõe a implantação de um Centro de Pesquisa para a Prevenção de Desastres no Rio, visando à realização de pesquisas, oferta de apoio técnico e formação de pessoas na área.

Por fim, cabe avançar nos espaços em construção que permitam às comunidades se fortalecerem no enfrentamento de eventos extremos. Aqui a proposta ainda incipiente de construção dos Nudecs (Núcleos Comunitários de Defesa Civil), prevista pela Política Nacional de Defesa Civil, poderia e deveria se articular com a política de saúde no nível local através dos agentes comunitários de saúde e dos programas de saúde da família, sem influências danosas de clientelismos políticos e fins eleitorais.

MARCELO FIRPO PORTO é pesquisador da Fiocruz. VALCLER RANGEL FERNANDES é vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz.