Título: Mudança de mentalidades
Autor: Feuerwerker, Alon
Fonte: Correio Braziliense, 12/06/2009, Política, p. 4

Dado que recriar a comunidade primitiva em pleno século 21 é tão possível quanto seria, por exemplo, colonizar o sol, o resultado prático é o seu contrário: um faroeste em que só vale mesmo a lei do mais forte

Quando a Câmara dos Deputados alterou a medida provisória (MP) 458, que regulariza terras na Amazônia, ofereceu condições políticas ideais para a sanção do presidente da República. Luiz Inácio Lula da Silva poderá agora vetar o que apelidou de ¿excessos¿, poderá fazer uma média com o ambientalismo e, ao mesmo tempo, manter o núcleo do texto: a porta finalmente aberta para que brasileiros responsáveis pelo desbravamento da Região Norte deixem a categoria dos bandidos potenciais.

Uma vez sancionada a lei, e mesmo se mais nada fizer na sua passagem pelo governo, o ministro Roberto Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos) terá deixado uma bela marca na história do Brasil. O país lhe deverá essa. Verdade que o projeto saído do Congresso tem problemas, ainda mais se o Planalto vetar mesmo as mudanças introduzidas na Câmara e mantidas no Senado. Persistirá em algum grau o preconceito contra as empresas rurais, assim como persistirão as limitações regressistas a que a terra receba o estatuto pleno de mercadoria. Mas não é o mais importante. O fundamental é que a MP 458 se apresenta como ponto de partida para uma reforma agrária verdadeira e para a incorporação acelerada e legal da nossa fronteira agrícola norte à esfera mercantil. A MP não deve ser vista como fim de caminho, mas começo. Foi assim na Lei de Biossegurança. Primeiro veio a regularização da soja transgênica. Depois, surgiu do Executivo um projeto confuso para reformar a legislação referente aos organismos geneticamente modificados. Com o tempo, a vida e o processo político cuidaram de aperfeiçoar a coisa, que terminou boa o suficiente para sobreviver a um histórico julgamento no Supremo Tribunal Federal.

Ao assinar em 2003 a MP da soja geneticamente alterada, Lula descriminou os produtores de transgênicos. Foi uma saudável ruptura com o passado do PT. Agora, a MP 458 é o marco de mais um salto. Vai minguando o sonho idílico de recriar a comunidade primitiva, baseada no extrativismo e na revogação passadista da divisão social do trabalho. E se fosse só um sonho não teria maiores consequências. Sonhar não faz mal a ninguém. O problema começa quando se tenta levar a utopia à prática. Como a recriação do comunismo primitivo em pleno século 21 é tão possível quanto seria, por exemplo, colonizar o sol, o resultado prático é o seu contrário: um faroeste em que só vale mesmo a lei do mais forte.

Faroeste que serve como luva aos propósitos de certo ativismo, para quem o Brasil é um equívoco a retificar. O que somos nós? Um país expandido do litoral para o interior, graças 1) ao esforço heroico dos portugueses entre os séculos 16 e 18, 2) à energia investida pelo Império no século 19, sem o que seríamos uma espécie de América espanhola, mesmo que falando português e 3) ao gênio de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, que na transição para o século 20 consolidou legalmente nossas fronteiras.

Já a sub-historiografia recente nos resume ao produto de uma sucessão de crueldades. Mas, que país não o é na origem? Uma coisa é reconhecer e homenagear o sofrimento de quem foi vitimado no processo de construção nacional. Outra, bem diferente, é propor a desconstrução do Brasil como expiação pelos nossos pecados originais.

A criminalização a priori dos produtores rurais que ajudam a manter a Amazônia como território brasileiro é mais um vetor da operação intelectual voltada a desconstruir nossa identidade nacional. Com a MP 458, além de oferecer base legal para a solução de conflitos históricos, o governo Lula abre em boa hora caminho a uma necessária mudança de mentalidades.