Título: Questão de princípios
Autor: Bernhard, Ricardo
Fonte: O Globo, 21/04/2010, Opinião, p. 7

Tema recorrente no noticiário internacional, o programa iraniano de desenvolvimento de tecnologia nuclear é analisado, quase exclusivamente, em termos políticos e tecnológicos. Defensores e críticos do projeto do país presidido por Mahmoud Ahmadinejad tomam como dado incontestável a legitimidade ou a imoralidade das ambições do Irã. Assim, embora razões morais não estejam ausentes das análises dos internacionalistas, não são explicitamente desenvolvidas, são alicerces vacilantes de interpretações de natureza diversa.

Para apresentar uma possível e, segundo este articulista, a mais razoável concepção moral do caso Irã, é de grande proveito utilizar o conceito de ataque preventivo formulado pelo filósofo liber tário americano Robert Nozick, em sua formidável obra ¿Anarquia, Estado e utopia¿.

Imagine que um vizinho esteja a ponto de realizar uma ação que em si não seja condenável, embora aumente necessariamente seu poder de agressão contra você. Digamos, comprar um revólver. O fato de que pode vir a surgir um conflito entre os dois condôminos, de que as pessoas costumam tomar atitudes imprudentes em discussões e de que portar uma arma pode levar a um ataque fatal, é suficiente para que seja moralmente justificável impedir, de modo preventivo, seu vizinho de adquirir o revólver? Não, segundo Nozick. Não são condenáveis e, portanto, não podem ser proibidos os atos que são inofensivos salvo se seguidos por uma decisão de, com base neles, cometer o mal. Caso o vizinho houvesse declarado a você que estava indo comprar o revólver para matálo, a obtenção da arma representaria uma etapa necessária para a execução de uma decisão já tomada e anunciada. Nessa situação, impedi-lo de adquirir o revólver é legítimo.

Chegamos, finalmente, à concepção de ataque preventivo do libertário americano: ataques preventivos somente são legítimos quando impedem a realização de ações que produzem o mal ou que são a última etapa a permitir a concretização de um objetivo declarado e condenável. Podemos, agora, analisar moralmente o projeto iraniano de desenvolvimento de tecnologia nuclear.

As autoridades do país persa afirmam que a busca de expertise em enriquecimento de urânio destinase a produzir isótopos para fins medicinais. Moralmente, ainda que tais autoridades sustentassem que o programa nuclear objetiva a fabricação de bombas nucleares para dissuadir ataques de inimigos externos, o projeto iraniano seria legítimo.

Mas há declarações do mais importante membro do governo do Irã, o presidente Mahmoud Ahmadinejad, que retiram qualquer credibilidade dos pronunciamentos a respeito do projeto de desenvolvimento de tecnologia nuclear. Em inúmeras oportunidades, Ahmadinejad revelou sua opinião de que Israel deveria ser varrido do mapa.

Não é difícil concluir que o programa nuclear iraniano, alegadamente destinado à produção de isótopos para fins medicinais, representa uma etapa necessária para o objetivo declarado de destruir Israel.

Desse modo, Israel e todos os países engajados na manutenção da paz na sociedade internacional estão moralmente legitimados a impedir que o Irã desenvolva internamente a tecnologia nuclear, de acordo com os princípios apresentados por Robert Nozick. Não se trata aqui de defender um ataque armado ao Irã, que, ao que tudo indica, está muito longe de chegar a enriquecer urânio nos níveis necessários para fabricar uma bomba.

Na atual conjuntura, tal ataque seria desproporcional à ameaça: sanções econômicas e pressão política são as medidas apropriadas para conter os primeiros passos rumo à execução de um mal anunciado.

Mas, aqui, a análise moral deve ceder lugar a considerações políticas, para as quais o presente artigo buscou, esperançosamente, oferecer bases menos vacilantes.

RICARDO BERNHARD é diplomata.