Título: Gafe da diplomacia britânica
Autor:
Fonte: O Globo, 26/04/2010, O Mundo, p. 20

Agência O Globo Reino Unido se retrata por memorando interno sugerindo ao Papa 'abrir clínica de aborto'

Um memorando interno de um funcionário de 23 anos do Ministério de Relações Exteriores do Reino Unido que começou como piada mau gosto de final de expediente acabou neste fim de semana com um pedido formal de desculpas do governo britânico ao Vaticano. O documento com um roteiro fictício para a visita oficial do Papa ao país, em setembro, sugeria, entre outras coisas, que Bento XVI lançasse sua própria marca de preservativos. O e-mail vazou para a imprensa e, segundo fontes da Santa Sé, o incidente diplomático poderia levar até ao cancelamento da viagem de quatro dias do Pontífice. O memorando, escrito em março após uma reunião entre quatro funcionários de baixo escalão envolvidos na programação da visita oficial, sugeria que, ao longo de sua estada, o Papa participasse ainda da inauguração de uma clínica de aborto e abençoasse um casamento gay. Com o título da mensagem dizendo ¿A visita ideal teria...¿, o texto também listava uma série de outras programações fictícias, como lançar uma linha-direta para crianças vítimas de abuso, cantar em dueto com a Rainha Elizabeth e ser acompanhado por supostas autoridades, como a cantora Susan Boyle. O documento, que circulou entre funcionários do governo britânico e inclusive dentro de Downing Street (sede do governo), vazou para o ¿Sunday Telegraph¿. Segundo as fontes do jornal, o incidente teria deixado apavorado o secretário de Relações Exteriores, David Miliband. A retratação foi realizada neste fim de semana através de um pedido de desculpas formal do embaixador britânico no Vaticano, Francis Campbell, e de uma declaração escrita tachando o memorando de tolo e desrespeitoso: ¿Esse é claramente um documento tolo que não reflete de forma alguma as posições ou as políticas do Ministério de Relações Exteriores. Muitas das ideias são claramente imprudentes, tolas e desrespeitosas¿. O texto que causou toda a confusão estava anexado num email. Uma mensagem que acompanhava o texto dizia que o documento ¿não deveria ser compartilhado¿ externamente e reconhecia que era resultado de um brainstorm que levou em consideração ideias ¿das mais absurdas¿. O texto foi retirado de circulação assim que oficiais de alto escalão o receberam por e-mail.

Visita poderia ser cancelada

O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, disse que o pedido de desculpas do Reino Unido tinha sido recebido pela embaixada da Santa Sé.

¿ Foram oferecidas todas as explicações e não há nada a agregar ¿ limitou-se a dizer.

O autor da mensagem, o funcionário iniciante Steven Mulvain, não foi punido, já que fora autorizado por um superior a enviar o texto. A chancelaria britânica informou que o funcionário responsável pela autorização ¿foi transferido para outras funções¿, depois de receber advertências orais e por escrito de que cometeu um grave erro de julgamento. Mas, nos bastidores, assistentes ligados ao Papa deixaram claro esperar que todos os envolvidos com o documento ¿altamente ofensivo¿ deveriam ser responsabilizados. Segundo uma fonte do alto escalão do Vaticano, o incidente poderia ter ¿graves repercussões para o governo britânico¿, que deveria questionar se ¿as ações tomadas foram suficientes¿.

¿ É possível até que a viagem seja cancelada já que o assunto é altamente ofensivo ¿ afirmou a fonte ao ¿Telegraph¿.

A viagem do Papa ao Reino Unido já havia gerado polêmica no país, quando milhares de pessoas organizaram um abaixo-assinado na página do governo na internet contra a visita, motivados pela onda de escândalos de abusos sexuais que a cada dia ganha novos capítulos dentro da Igreja. O Papa vem sendo ele próprio acusado de ter ajudado a encobrir casos de pedofilia e criticado por não ter um pulso mais firme na resposta aos escândalos. Ontem, em sua tradicional missa dominical na Praça de São Pedro, Bento XVI manteve a linha usada anteriormente e não se referiu casos de pedofilia explicitamente. Desta vez disse que padres ¿deveriam proteger¿ crianças do mal e conquistar a ¿confiança absoluta¿ de seu rebanho. Um dos maiores testes para Bento XVI em relação à sua postura diante dos casos de abusos deve sair em breve, com sua decisão sobre o destino da uma vez proeminente ordem dos ¿Legionários de Cristo¿. A rede ¿ que diz contar com mais de 800 sacerdotes pelo mundo, 2.500 seminaristas, além de 70 mil integrantes de um braço chamado Regnum Christi ¿ enfrenta acusações de que seu fundador, o padre Marcial Maciel, teve pelo menos um filho e abusou de jovens seminaristas. Maciel, que morreu em 2008 aos 87 anos, formou várias das lideranças da legião, que também inclui escolas primárias e secundárias, assim como universidades no México, na Itália e em outras partes do mundo. A rede religiosa passou por uma investigação, ordenada no ano passado pelo próprio Papa e cujos resultados devem ser divulgados em breve. O caso é mais complexo para o Vaticano do que simplesmente descobrir o passado de Maciel. Os atuais representantes da rede, inclusive o atual diretor-geral, o padre Alvaro Corcuera, insistem que só se inteiraram dos crimes do religioso agora. Mas muitos críticos suspeitam que vários deles já sabiam que o fundador da organização abusava de crianças e tinha filhos com mulheres, e nada fizeram a respeito.