Título: Derrotada no julgamento, OAB diz que STF 'perdeu bonde da História'
Autor: Brígido, Carolina
Fonte: O Globo, 30/04/2010, O País, p. 4

OPHIR CAVALCANTE: "Tortura não é crime político, mas crime comum"

O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, criticou duramente ontem a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de rejeitar revisão da Lei da Anistia e, com isso, impedir a punição de agentes da repressão acusados de tortura. Para Cavalcante, o STF "perdeu o bonde da História" e futuramente será julgado pela sociedade pelo suposto equívoco. Ele entende que a decisão do tribunal está na contramão da tendência internacional de considerar a tortura como crime imprescritível:

- Lamentavelmente, o STF entendeu que a Lei de Anistia anistiou os torturadores. A nosso ver, é um retrocesso em relação aos preceitos fundamentais da Constituição e às convenções internacionais, que indicam, de forma muito clara, que tortura não é crime político, mas crime comum e de lesa-humanidade, sendo, portanto imprescritível - disse ele, apesar de a OAB ter tido posição diferente em 1979, quando a Lei de Anistia foi aprovada no Congresso.

Tarso: manutenção da lei não impede processos

O ex-ministro da Justiça Tarso Genro, um dos principais defensores da tese de revisão da Lei de Anistia, disse que gostaria de ler os votos dos ministros antes de formar uma opinião. O ex-ministro entende, no entanto, que a revalidação da anistia não livra torturadores de prestar contas. Para Tarso, se forem levados a julgamento, torturadores terão que comprovar que praticaram tortura em defesa do regime militar e não por vontade pessoal de maltratar militantes políticos de esquerda:

- O fato de o STF ter declarado a validade da lei, dizendo que os torturadores estão abrigados na anistia, não impede a proposição de processos contra essas pessoas, que, para serem beneficiadas pela decisão do Supremo, terão que demonstrar que a tortura que cometeram foi no contexto político da ditadura para defender o regime.

O líder do PSDB na Câmara, João Almeida (BA), elogiou o STF. Para ele, a sociedade deve fazer todo o esforço necessário para esclarecer os crimes cometidos pela ditadura e também pelos adversários do regime. Mas nem por isso se deve revisar a anistia.

- A Lei de Anistia expressa um acordo feito naquela época, nas condições políticas daquele momento, para garantir a transição do regime autoritário para o regime democrático que temos hoje - disse Almeida.

O líder do governo da Câmara, Cândido Vaccarezza (PT-SP), não quis se manifestar, alegando que não é uma questão específica do governo. A posição do deputado é reflexo da divisão interna no governo. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, era contra mudar a lei. Tarso e o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria de Direitos Humanos, eram a favor.

Caso pode ser levado à Corte Interamericana

No Rio, Maurice Politi, coordenador do Projeto Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, disse ser uma frustração assistir aos votos do STF favoráveis à Lei de Anistia.

- Em nenhum momento a tortura foi permitida, nem nas leis mais duras da ditadura. Mas os torturadores, para não serem punidos, se abrigaram sob o guarda-chuva dos crimes conexos. Quem torturou, no entanto, não estava cometendo um crime político, mas, sim, de lesa-humanidade, e assim devia ser tratado - disse Politi, ex-preso político, que participou de um encontro sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) no Instituto de Estudos da Religião (Iser).

Para Politi, se o Brasil não modificar, internamente, a interpretação da legislação para julgar os torturadores, o país poderá sofrer derrotas nas cortes internacionais. Para o advogado Modesto da Silveira, que defende vítimas de tortura, o próximo passo deverá ser levar o caso à Corte Interamericana, onde ele acredita que o Brasil pode ser condenado:

- Isso desmoralizaria o país, prejudicando inclusive suas pretensões de maior protagonismo em órgãos como as Nações Unidas.

No evento, Ana Miranda, integrante do Fórum de Reparação e Memória do Estado do Rio e presa quatro vezes pelos militares na ditadura, distribuiu adesivos com a mensagem "Tortura é crime".

Em São Paulo, o arquiteto e ativista social Chico Whitaker, ganhador em 2006 do "Prêmio Nobel Alternativo", concedido pela Fundação Nobel, de Estocolmo, disse que ficou surpreso com a decisão do STF:

- É surpreendente a decisão. Não pensava que fossem tão duros os posicionamentos. Acreditava que fosse ouvido o clamor da sociedade, como aconteceu em outros países da América Latina, onde comissões da verdade foram instaladas e pelo menos um pouco de justiça foi feita. Aqui no Brasil nem um pouco. É triste, muito triste. Mas não podemos esmorecer.

Para a diretora executiva da Justiça Global, Andressa Caldas, a decisão é lastimável:

- Era de se esperar que fossem respeitados a legislação e os acordos internacionais.

Vitória Grabois, vice-presidente do Instituto Tortura Nunca Mais, disse que o Brasil é o país da América Latina que tem a legislação mais atrasada para a punição de militares:

- A nação precisa saber o que fizeram essas pessoas que cometeram crimes de lesa-humanidade.