Título: Aos estados e municípios, a lei. À União, os gastos
Autor: Alvarez, Regina
Fonte: O Globo, 03/05/2010, O País, p. 3

Legislação de responsabilidade fiscal, que completa dez anos amanhã, não brecou crescimento de despesas federais, como as de pessoal

Considerada um marco nas finanças públicas do país, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completa dez anos amanhã contabilizando conquistas expressivas no controle e na transparência das contas dos estados e municípios. Mas, em relação à União, mostrou-se incapaz de brecar a escalada de gastos que ameaça o equilíbrio fiscal. A falta de uma trava para as despesas de custeio e a fixação de limites frouxos para os desembolsos de pessoal facilitaram o crescimento das despesas correntes na esfera federal, abrindo espaço para a redução do superávit primário (economia para pagamento de juros da dívida). Enquanto estados e municípios elevaram em 235% o superávit entre 1999 e 2009, o esforço da União caiu 36,6%. Em 1999, o superávit dos estados e municípios correspondia a 0,20% do Produto Interno Bruto (PIB). Chegou a 0,67% em 2009, mesmo com os efeitos da crise global, que reduziu as receitas em todas as esferas de poder. Já na União, o superávit correspondia a 2,13% do PIB em 1999 e alcançou 2,75% em 2004, mas, a partir de 2007, com a disposição do governo de elevar os gastos do Orçamento, vem sendo desidratado, ano após ano, pelo aumento das despesas. Em 2009, atingiu o patamar mais baixo da década, ficando em 1,35% do PIB. Em vez de pagar dívida, portanto, a opção da União tem sido expandir gastos. Entre 1999 e 2009, as despesas federais com pessoal, investimento e custeio da máquina aumentaram R$349,308 bilhões, passando de 14,5% para 16,5% do PIB.

Brecha favorece aumento do custeio

A ausência de um dispositivo para conter os gastos de custeio é considerada por especialistas a maior de todas as falhas da LRF. Essa brecha favoreceu a gastança promovida pelo governo federal, principalmente no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nos estados e municípios, as regras rígidas da lei fiscal para reduzir o endividamento complementaram exigências dos contratos de rolagem das dívidas assinados em 1999, um ano antes da vigência da LRF. Assim, esses entes da federação tiveram que suar a camisa para produzir superávits robustos e honrar os contratos. A LRF proibiu o refinanciamento das dívidas dos estados e municípios com a União, acabando com uma prática recorrente nas administrações estaduais. E estabeleceu limites para os gastos de pessoal e para a dívida, que não pode ultrapassar o teto de duas vezes a receita corrente líquida. No caso da União, o teto fixado para os gastos de pessoal - de 50% da Receita Corrente Líquida, sendo 40,9% para os gastos do Executivo - mostrou-se, na prática, muito folgado, devido ao aumento expressivo das receitas da União e da carga tributária nos últimos anos, abrindo espaço para o crescimento dessas despesas. Assim, mesmo com uma folha de pessoal que consumiu R$165 bilhões dos cofres públicos em 2009, a União continua enquadrada com folga nos limites da lei fiscal. A falta de uma trava para os gastos de custeio também abriu brechas para que alguns estados e municípios que estavam com as despesas de pessoal próximas do limite da LRF maquiassem alguns desses gastos, terceirizando parte da folha de pagamento, por exemplo. - Não ter estabelecido limites para os gastos de custeio é uma falha da lei. Um ponto negativo. Esses gastos de custeio estão mimetizando o setor público como um todo. Faz-se de tudo dentro de custeio, pagam-se pessoal, diárias e outras despesas que não entram no limite da lei - afirma o economista Marcelo Piancastelli, do Ipea. No caso do governo federal, além de elevar os gastos de custeio e de pessoal, existe uma prática recorrente de ignorar dispositivos da lei fiscal, como, por exemplo, aquele que determina que uma despesa só pode ser criada com a garantia de receita para custeá-la. Nos últimos dois anos, o governo concedeu aumentos generalizados para o funcionalismo, que se estendem até 2012, comprometendo os orçamentos futuros, o que bate de frente com as regras da LRF. Há poucos dias, o Tesouro Nacional editou a Medida Provisória (MP) 487, concedendo uma ampla anistia - justificada pelos efeitos excepcionais da crise global - aos estados que em 2009 não conseguiram cumprir as metas de superávit primário e exigências do ajuste fiscal imposto pelos contratos de renegociação das dívidas. Assim, esses entes não ficarão impedidos de tomar novos empréstimos. No ano eleitoral , outras medidas foram adotadas para beneficiar prefeituras inadimplentes, facilitando o repasse de verbas federais. - A anistia aos estados é fruto da pressão política. Fere o espírito da lei e a seriedade da política fiscal. É um precedente muito negativo e fragiliza as contas públicas - afirma Piancastelli. Na opinião do economista, que acompanha de perto as finanças dos estados, no geral a situação das contas estaduais é muito confortável, e o argumento do governo de que a anistia pretendeu compensar os efeitos da crise global não se sustenta. - Não era a hora de dar anistia. Abriu uma porteira, afrouxando a disciplina fiscal. O argumento de ano atípico tem objetivo eleitoral - aposta. O economista José Roberto Afonso, um dos pais da LRF, observa que um regime fiscal que se propõe responsável nunca será uma obra acabada. Assim, defende que a lei seja aperfeiçoada, mas enfatiza o seu papel inquestionável na construção de um novo regime fiscal e no trato das contas públicas. Organizador do seminário que a FGV Projetos e o Instituto Brasiliense de Direito Público promovem nesta terça-feira em Brasília sobre os dez anos da LRF, Afonso destaca que a lei é referência para outros países, principalmente os emergentes, e contribuiu de forma decisiva para a imagem positiva que o Brasil tem hoje no exterior. - Levantar os problemas é o caminho mais curto para encontrar soluções. Mais do que a lei, trata-se de criar uma nova cultura. Isso não será feito com retórica, mas com uma nova prática no dia a dia dos governos - afirma Afonso.