Título: Quem diria...
Autor: Oliveira, Rosiska Darcy de
Fonte: O Globo, 02/05/2010, Opinião, p. 6

Quem diria, o voto das mulheres talvez decida as eleições para a Presidência da República.

Como foi longo o caminho que fez delas 70 milhões de eleitoras em um pleito em que, até agora, são majoritárias entre os candidatos.

Como o Brasil mudou! Uma questão atravessa os espíritos: como elas votarão? Ficou para trás o tempo em que um político influente, alertado por mim sobre a importância das eleitoras que trazem consigo expectativas próprias, garantiume que elas ¿votavam com os maridos¿. Ledo engano. Aquele um quarto das famílias brasileiras que vivem de um salário feminino não tem em casa um marido ditando o voto. E, com toda certeza, não é preciso não ter marido para pensar com a própria cabeça.

Ai de quem não reconhecer que uma revolução de mentalidades fez do mercado de trabalho um espaço feminizado, tornando problemática a organização das famílias e as intersecções entre o mundo do trabalho e o da casa. Que as famílias, hoje, múltiplas e insolitamente desenhadas, já não são a moldura padrão que enquadrava uma mulher submissa aos desígnios de um provedor. Uso essa palavra e sei que a eleitora de 20 anos, perplexa, pensará na Internet.

Quem é essa mulher brasileira que vai votar em fulano ou beltrana, quais as suas motivações? Eis a caixa preta das eleições de outubro.

Nunca acreditei que a mulher era um homem como outro qualquer.

Sei, por experiência própria, que o mundo das mulheres guarda muitos segredos, não ditos, mas vividos, que afligem mesmo aquelas que, imigrantes ¿ algumas exiladas ¿ no mundo dos homens, falam masculino sem sotaque.

As mulheres habitam um corpo cujo destino é desdobrar-se em outros.

O útero é o primeiro meio ambiente que o ser humano conhece e não por acaso o corpo tem tamanha importância na vida das mulheres.

As escolhas sobre a maternidade, as condições da gravidez e do parto, as leis que tolhem ou propiciam liberdades, o temor atávico da violência sexual ocupam, em suas vidas, uma centralidade.

Ricas ou pobres, essas preocupações são assunto de confidências.

Tudo que, na vida das sociedades, tangencia a inarredável realidade do corpo feminino é, para elas, política e pesa na decisão.

Habitando esse corpo as mulheres trabalham aparentemente como um homem qualquer. O trabalho articula-se a uma vida privada que elas garantem e protegem, mas cuidadosamente ocultam como se fora um ilícito, tamanho é o temor de que ela se constitua no defeito que as desqualifica como trabalhadoras.

Nosso país estabeleceu consensos contraditórios: estimulou as mulheres a estudar e trabalhar e esqueceu de acompanhar essas reformas modernizadoras de estruturas de acolhimento que tornassem a vida familiar viável, e não o ponto cego das relações sociais Crianças e idosos são os dois extremos de uma mesma solidão. Para além da expectativa elementar do cumprimento do preceito constitucional de igualdade ¿ a trabalho igual, salário igual ¿ no conturbado cotidiano das mulheres se esconde uma demanda de inteligência no repensar o mundo do trabalho, para homens e mulheres, que leve em conta o valor da vida privada. Quem terá essa imaginação, tornando a sociedade menos inóspita e desigual? Muito aflige as mulheres a violência das ruas. Quem tem filhos adolescentes dorme mal. A segurança não é um problema abstrato que os especialistas discutem. É uma angústia diária, desamparo. Uma amiga me disse que felicidade é ouvir, de madrugada, o barulho da chave na porta, quando a filha chega. Sã e salva.

Não é privilégio das mulheres temer pelos filhos, mas já que o mapa eleitoral nos fala de milhões de balzaquianas, massa crítica que decidiria as eleições, há que registrar que o dia a dia da juventude, escolas que protejam e ensinem, a possibilidade de um emprego e de um futuro honesto, um sentido para a vida a que convidaria uma sociedade revitalizada pela ética, são expectativas maternas, intensas e esperançosas.

Estranhos assuntos esses, tão marginais às chamadas questões nacionais em que se centra o debate político.

É que eles fervilham no pré-sal da existência humana, a camada mais submersa, talvez a mais rica.

Tomara que as mulheres forcem, nessas eleições, a vinda à tona desses temas menosprezados e que exprimem a cultura feminina, esse ruído surdo que sobe das conversas de 70 milhões de brasileiras. Há muito os governantes, se tivessem juízo, já lhes teriam dado a prioridade que merecem. Quem o fizer estará restabelecendo algo a que elas aspiram, e muito: escuta e respeito.