Título: Garimpeira de sonhos no lixo dos barões
Autor: Lins, Letícia
Fonte: O Globo, 02/05/2010, O País, p. 16

Catadora de papel viu filho que fora primeiro colocado no vestibular ser morto por engano; assassino ainda está solto

LUÍZA: ela e as filhas estão no sistema de proteção a testemunhas; desoladas com a perda do irmão, filhas já tentaram se matar. Na casa da catadora, uma faixa pede justiça para a morte de Alcides

RECIFE. Ela comeu o pão que o diabo amassou. Filha de pai omisso, aos 8 anos já vivia pelas ruas vendendo esterco e flores, limpando jardins, carregando frete. Era o jeito de ajudar a mãe doente a criar os sete filhos, sobreviventes de uma prole de doze. Órfã, assumiu a família por não aceitar a amante do pai nem a rejeição paterna a ela e aos irmãos. Adulta, fez todo tipo de trabalho honesto: transformou bicicleta em carrocinha, vendeu cachorro-quente na rua, catou material para reciclagem. Foi no meio do ¿lixo dos barões¿ ¿ como costuma dizer ¿ que começou a garimpar livros e cadernos. Destes, arrancava as folhas usadas e, nas brancas, ensinou os quatro filhos a ler e a escrever.

Nos descartes, achou também um quadro negro, que transformou em ferramenta para lhes repassar as primeiras letras. Favelada, vivendo abaixo da linha da pobreza, Maria Luíza Ferreira do Nascimento, de 47 anos, conseguiu o que parecia impossível para uma mulher de vida tão difícil quanto a dela: seus quatro filhos chegaram à universidade.

A alegria não a livrou de mais um golpe na sorte. O mais velho, Alcides do Nascimento Lins, de 22 anos, foi barbaramente assassinado na frente de casa, em março deste ano. Morreu baleado por bandidos, que pretendiam matar dois irmãos traficantes em um acerto de contas. Com muitos débitos, a dupla dava aos fornecedores o endereço errado: justamente o de Luíza, fato que ela só descobriu depois de ver o filho morto.

Uma defesa da educação

Alcides já havia se transformado em notícia nacional em 2006, porque foi o primeiro colocado no vestibular entre os oriundos da rede pública de ensino. Estudante de biomedicina, era um aluno brilhante e estava prestes a ganhar uma bolsa de estudos para fazer um curso na Inglaterra. Ele terminou se transformando em referência para a mãe e as irmãs, Ana Paula, de 20, e as gêmeas Andrezza e Andréa, de 19. A primeira passou para Farmácia na Universidade Federal de Pernambuco. As outras foram aprovadas em uma faculdade particular, para os cursos de Publicidade e Administração, respectivamente.

Mas nenhuma delas está frequentando a universidade. A mãe também não pode trabalhar. As quatro se encontram no Sistema Estadual de Proteção à Pessoa e têm os passos monitorados pela Secretaria Executiva de Justiça e Direitos Humanos, da qual recebem assistência psicológica. Elas testemunharam o assassinato de Alcides, e um dos dois bandidos que o mataram, João Guilherme Nunes da Costa, de 28 anos, até o momento não foi encontrado pela polícia. Luíza chegou a se atracar com eles, para defender o filho.

Mãe e irmãs da vítima ainda não superaram o trauma da violência. Nem da perda. Durante a conversa com O GLOBO, Luíza chorou quatro vezes. E teme pela vida das meninas. No ¿exílio¿ forçado, duas delas já quiseram se matar. Uma tentou se enforcar e outra, se afogar, segundo revela a mãe:

¿ Sem o irmão, elas não sabem sobreviver. Eu também não sei se consigo viver sem meu filho. Durmo e acordo pensando nele, todos os dias. Ele era um anjinho de luz, um pai, um irmão ¿ diz Luíza, sem conter as lágrimas.

Apesar de ter começado a trabalhar menina, Luíza também não mediu esforços para estudar. Queria ser alguém na vida, como gosta de destacar. Cursou o ensino médio. Mas o colégio pegou fogo e até hoje ela não conseguiu comprovar a conclusão do curso. Para todos os efeitos, tem só o fundamental. Foi obrigada a sepultar o sonho de se tornar veterinária. Mas jurou para si mesma que os filhos chegariam lá, na universidade. Começou enviando-os para a rede pública, quando eles já sabiam ler alguma coisa que ela mesma ensinou. Não deixou nenhum trabalhar, apesar das dificuldades financeiras. Preocupado com o esforço da mãe, Alcides, ainda pequeno, oferecia-se para ajudá-la a catar material reciclável. Ela o mandava ficar em casa para estudar.

¿ O ensinamento que dei a ele e às irmãs foi que tudo só se conquista com muita dificuldade, que nada fácil presta. Que as pessoas que pegam as coisas fáceis, dos outros, não têm futuro. O futuro, a pessoa faz se esforçando, e sem cobiçar o que é alheio, sem ter inveja. Eu sempre disse a eles que é na sala de aula que se consegue o seu objetivo. E falava para Alcides que, com uma profissão, ele podia ser até um chefe ¿ afirma a mãe.

Alcides dizia à mãe que queria ser um cientista, pretendia descobrir a causa de muitas doenças. Chegou perto. Segundo seus professores da UFPE, as pesquisas que ele vinha fazendo no setor de hematologia poderiam indicar novos procedimentos no setor.

Aos 8 anos, Alcides já sabia preparar a comida das irmãs, enquanto mãe e pai ficavam na rua trabalhando. Luíza e o companheiro viveram juntos por 28 anos, até que ele morreu em 2007. Foi quando o filho ¿ fazendo sucesso na faculdade ¿ ganhou um estágio remunerado, e ela arranjou emprego em uma firma. Ele ganhava R$275 e ela, R$350. Juntos, conseguiram melhorar a renda da família e foi assim que ela construiu sua pequena casa na vila Santa Luzia, bairro da Torre, onde antes era um tosco barraco em que criou os filhos. Levantou paredes, ¿telhou¿, fez divisórias ¿ ofícios que aprendeu quando tentou ganhar a vida como pedreira.

No ambiente da favela cercada de marginais e traficantes, ela sempre alertava os filhos para não se envolver com bandidos:

¿ Sempre mostrei a eles que bandido tem vida curta, que o destino dele é sete palmos de terra. Que bandido não dá valor à vida. Dizia que, se algum errasse, eu mesmo entregaria à polícia. Ser pobre não é vergonha. Criei meus filhos para que sejam alguém na vida, cidadãos, para mostrar ao mundo que pobre não é desonra. Lutei, forcei, derramei lágrimas de sangue, botei na faculdade. Mas aconteceu (o assassinato de Alcides) o que aconteceu. Fiquei revoltada.

Pouco antes de morrer, Alcides escreveu um texto que, segundo ele, refletia o ensinamento da mãe: ¿A felicidade se conquista aos poucos. Ela é adquirida por cada pedra tirada do caminho¿. O caminho da volta da família à casa tão duramente conquistada, no entanto, ainda não pode ser feito. A casa na vila Santa Luzia ainda está fechada, com faixas que lembram a tragédia vivida pela família. O sonho de Luíza, agora, é colocar na antiga residência uma faixa com a filosofia resumida pelo filho que a vida lhe levou antes da hora.