Título: Unidos no drama
Autor: Machado, Antônio
Fonte: Correio Braziliense, 16/06/2009, Economia, p. 16

Salada de letras regada a dólar dos Brics só é digerível acrescendo as três de EUA ao acrônimo

O presidente Lula e seus colegas da Rússia, Índia e China foram à pequena cidade russa de Ecaterimburgo, nos Urais, onde em julho de 1918 teriam sido executados o czar Nicolau II e toda a sua família, testar uma hipótese e avalizar uma ironia, a influência da banca.

O teste é para saber se Brasil, Rússia, Índia e China têm mais em comum que a sonoridade do acrônimo que os nomeia, Bric. A ironia é que a sigla e o que ela representa ¿ a seleta de países emergentes que em 2050 ascenderiam ao status de potências econômicas do mundo ¿, são obra de um economista, Jim O¿Neill, de um dos mais notáveis ícones de Wall Street, o banco de investimentos Goldman Sachs. Não surgiu por demanda de ninguém. Foi inventado, embora seja crível.

Diferentemente do Grupo dos 20, bloco das economias tradicionais, o G7, somado ao dos emergentes estendido, que expressa a evolução do poder econômico e político no mundo cada vez mais fracionado, o Bric é uma concepção artificial do mercado financeiro. Mas a ideia pegou. Mais pela fraqueza da hegemonia dos EUA que pelos atributos ¿ o mais notável dos quais é que todos exibem as maiores taxas de crescimento econômico do mundo. China e Índia mais que os outros.

A institucionalidade política de tais países, porém, é totalmente diversa entre si. Em várias facetas de seu perfil econômico, eles são concorrentes, até adversários. Seus interesses geoestratégicos não são comuns. A China, por exemplo, não apoia o pleito do Brasil por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, no qual está representada assim como a Rússia, para não abrir a porta para Índia e Japão, os seus rivais regionais na Ásia.

O governo Lula, em represália mais ou menos velada, não formaliza o reconhecimento da China como economia de mercado, empecilho para a sua adesão à OMC, Organização Mundial do Comércio. Não obstante, devido à severidade da recessão nos EUA e União Européia, a China se tornou o principal destino das exportações brasileiras. Só que, basicamente, de matérias-primas, já que concorrem até no Mercosul em ampla gama de bens industrializados, enquanto para os chineses o Brasil é apenas o seu 11º parceiro comercial.

O que os equipara entre tantas divergências é a posse de grandes reservas de divisas em ativos do Tesouro americano, o que os fazem credores e reféns da agonia do dólar ¿ uma questão financeira e geopolítica, mas que convém a todos tratar como desafio econômico.

A riqueza ameaçada Seis países (China, Japão, Taiwan, Coreia do Sul, Singapura, Hong Kong) entesouram metade das reservas globais de divisas, estimadas em US$ 7 trilhões, das quais quase US$ 2 trilhões são da China. Do total, 60% estão em dólares, três vezes mais que em euros. Em iene e libra são menos de 1,5%. O saldo está em ouro. O contraponto são os déficits, sobretudo dos EUA, sem os quais as reservas, reflexo de exportações, nunca teriam sido acumuladas em tais volumes.

É o senso de pragmatismo, ditado pela defesa da riqueza acumulada contra os EUA, que faz a ficção dos Bric ganhar realidade por meio da agenda comum do dólar. O temor é que por descontrole ou de caso pensado via inflação o governo de Barack Obama tente livrar-se das dívidas que condenam o país a vegetar por anos, talvez décadas.

Ricos e endividados Os Brics em geral se veem manipulados ¿ e mais depois das maciças emissões de dívida nos EUA para socorrer Wall Street e impedir a depressão. Segundo o relatório do FMI do começo do mês, a dívida dos 10 países mais ricos do G-20, afora China, vai pular de 78% do PIB em média em 2007 para 106% em 2010, representando aumento de US$ 9 trilhões em três anos, e 114% em 2014. No pior caso, vai a 150%.

A dívida dos emergentes membros do G-20, ao contrário, virá de 38% do PIB em 2007 para 35% em 2014, menos de um terço no mundo rico.

E a reação dos EUA? A alternativa à armadilha do dólar seria o comércio na moeda de cada país. É o que Brasil acertou com Argentina e propôs à China.

Rússia sugere que as moedas dos Brics se tornem conversíveis, algo menos fácil, pois implica livre fluxo de capitais, condição que a China reluta em adotar. Se se abrisse, haveria o risco de brusca valorização do renminbi, ruindo o nexo de seu modelo econômico.

E a reação dos EUA? Não é presumível que assistam quietos à ruína do dólar. Se forçarem sua queda, as reservas dos Brics viram pó. A salada de letras dos Brics só é digerível acrescendo outras três ao acrônimo, ficando Briceua. O resto é apelo a Obama para maneirar.

Como evitar o dólar Os problemas são sérios, e a nenhum dos governos dos Brics escapa essa compreensão, devendo-se tomar declarações apologéticas sobre o que é possível esperar da reunião dos Brics só como retórica. É legítimo supor para os Brics um ¿protagonismo¿ na economia global, como falou o ministro Guido Mantega. Daí a outro Bretton Woods sem Europa e EUA à mesa seria uma declaração de guerra cambial.

Mais razoável é que cada país com uma avenida de crescimento pela frente, o caso dos maiores emergentes, não espere pelos ¿outros¿. E faça as reformas internas necessárias para que suas moedas sejam aceitas como reserva de valor e meio de pagamentos internacional.