Título: Pacientes de Aids sofrem com falta de remédios
Autor: Freire, Flávio; Menezes, Maiá
Fonte: O Globo, 09/05/2010, O País, p. 3
Governo atrasa distribuição do Abacavir, prescrito para os casos mais graves
Carolina Benevides
Referência no tratamento da Aids no mundo, o Brasil enfrenta uma dramática crise na importação e distribuição dos principais medicamentos antiHIV. Desde dezembro, os soropositivos sofrem, em todo o país, com a falta do Abacavir, prescrito para os casos mais graves da doença. Há relatos de carência de outros remédios pelos estados, como a Lamivudina, para a primeira fase de manifestação do vírus. A angústia atinge crianças, mulheres grávidas, pacientes graves e doentes que estão na fase inicial do tratamento.
Em busca de alternativas provisórias para o problema, redes de solidariedade vêm sendo montadas: pacientes usam até medicamentos de outros que já morreram, por exemplo. Portarias do Ministério da Saúde recomendaram a troca de medicamentos, o que traz incômodos e riscos.
Aos 58 anos, o aposentado Silvio Cruz, morador de São Paulo, um dos estados onde a distribuição enfrenta problemas, usa o Abacavir desde 2007. Em janeiro, depois de ficar quatro dias sem o remédio, fez a troca por outro medicamento.
¿ Fiquei muito revoltado quando soube que o governo parou de entregar, me isolei e isso para quem tem a doença é muito ruim. Comecei a pensar: por que o governo quer me matar? Troquei porque não tive opção, mas fiquei dias sentindo como se minhas pernas pesassem 15 quilos cada, acabei acamado ¿ conta Silvio.
O paraibano Miro Araújo, de 38 anos, ficou sem o Lamivudina por duas semanas.
Os coquetéis precisam ser tomados diariamente.
¿ Tenho muito medo de que isso venha a aumentar minha resistência aos remédios. Essa é u m a m e d i c a ç ã o mais importante até do que a comida. As pessoas por aqui estão desesperadas, sem saber o que fazer, porque faltar pode significar uma sentença de morte ¿ diz Miro, lembrando que na Paraíba falta o Abacavir há dois meses.
Há falta de outros medicamentos também em Minas Ger a i s , To c a n t i n s , Goiás, Rio Grande do Sul, Ceará, Bahia, Alagoas e Rio.
¿ Tivemos que mandar remédio para um paciente em Minas que não podia trocar o Abacavir.
Pegamos de pessoas que haviam morrido e também restos de medicamentos de pacientes ¿ diz o presidente do Pela Vidda de São Paulo, Mário Scheffer.
Cristina Moreira, coordenadora de projetos da Sociedade Viva Cazuza!, diz que as crianças começam a sentir os efeitos da crise: ¿ Aqui nós ainda temos porque são 20 crianças e adolescentes e conseguimos ter margem de manobra, mas quem tem criança em casa já enfrenta dificuldades. Vemos isso com pavor.
Moradora do Rio, Jaciara Gomes, de 47, descobriu ser soropositiva há 8 anos. Desde que o Abacavir sumiu das prateleiras, ela pegou remédios com amigos que trabalham em ONGs e conseguiu oito com o médico com quem se trata. A partir de amanhã não terá o comprimido para tomar: ¿ Passei a última semana me sentindo muito mal por causa do medo de ter uma recaída. Eu fico repetindo que o HIV não vai me matar, mas estou em pânico.
Presidente do Núcleo Rio da Rede Nacional de pessoas soropositivas, William Amaral afirma que a solidariedade não funciona para grande parte dos pacientes: ¿ Tem gente usando sobra do medicamento de outra pessoa. Essa troca funciona para quem participa de alguma rede. Quem tem Aids e só o médico sabe fica isolado e sem o remédio.
O impasse está atrasando tratamentos: ¿ Tenho relatos de médicos que não iniciaram o tratamento porque sabem que é melhor não começar sabendo que vão parar. Eu adiei por um mês o de dois pacientes, mas em maio tive que começar. O vírus não espera o ministério se organizar ¿ diz a médica infectologista Tânia Vergara.
A pedagoga Nair Brito, 49 anos, conta que só está em dia com a medicação que a mantém com carga viral zerada porque conseguiu, com um então desconhecido, durante uma manifestação na porta da Secretaria de Saúde de São Paulo, 17 comprimidos do Abacavir, que ela usa desde 2007. Nair tem pílulas para tomar apenas até segunda-feira. Depois, diz ela, ¿o negócio é rezar¿.
¿ Naquele dia criamos uma rede.
Quem tinha mais, dava para quem não tinha. Mas daqui a pouco acaba para todo mundo ¿ diz ela, diagnosticada com a doença em 1993.
O governo de São Paulo informou que o medicamento chegou sexta-feira ao estoque da Fundação Remédio Popular (Furp). O Forum ONG-Aids de São Paulo confirmou a chegada do medicamento, mas teme pela demora na distribuição.
Assim como outros 3,7 mil pacientes que dependem da droga, Nair está indignada com a falta do medicamento.
A pedagoga diz que o Ministério da Saúde quer tratar os portadores como ¿ovelhas que vão para o abate¿ quando sugere mudança no tratamento terapêutico: ¿ Só posso trocar de remédios por indicação clínica, e não porque o governo não conseguiu comprar.
Atualmente, segundo a Agência de Notícias da Aids, cerca de 600 mil pessoas no Brasil estão infectadas com o vírus do HIV. Dessas, 400 mil sabem que são portadoras, mas apenas 230 mil já começaram a se tratar. A cada dia morrem oito brasileiros com a doença.