Título: A verdade sob os refletores
Autor: Grabois, Victória
Fonte: O Globo, 20/05/2010, Opinião, p. 7
De 1972 a 1974, do Sul do Pará ao Norte de Goiás, hoje estado de Tocantins, aconteceu o movimento conhecido como a Guerrilha do Araguaia.
Meu pai, Maurício Grabois, era o comandante.
Também fazia parte da Comissão Militar meu marido, Gilberto Olímpio Maria. À frente de um dos três destacamentos estava meu irmão André Grabois. Todos militantes do Partido Comunista do Brasil. No total, eram 69 cidadãos e cidadãs, estudantes, professores, médicos, economistas, engenheiros e operários, mais os camponeses que aderiram ao movimento. Dez sobreviveram. Todos os demais em sua maioria jovens que saíram de suas casas e não disseram para as famílias para onde iriam desapareceram. Quando surgiram as notícias do ataque do Exército aos destacamentos, as mães saíram em busca de seus filhos; elas e todas as outras mães dos países do Cone Sul que procuravam notícias ou os corpos dos filhos e filhas que militavam em organizações políticas. No Brasil, no início, a busca dessas mulheres era clandestina e individual. Com o tempo, ainda isoladas e sem visibilidade, formaram uma rede. A Lei da Anistia, em 1979, garantiu significativos avanços e as levou à realização de congressos. O primeiro em São Paulo. Em 1980, na Bahia, decidiram seguir em caravana até a região da guerrilha para saber, de fato, o que havia acontecido. Eu estava lá e lá comemorei, emocionada, meu aniversário. Durante 15 dias, vasculhamos o passado e constatamos que na população local a coragem e a solidariedade daquele grupo ainda estavam vivas. Fomos recebidos como celebridades e houve uma localidade em que a caravana foi saudada com fogos de artifício. Com farto material gravado e grande número de informações foi divulgada uma carta-denúncia à nação: 22 famílias entraram com uma ação contra o Estado brasileiro para saber a localização dos corpos de 25 guerrilheiros. O governo brasileiro impetrou 16 recursos e só em 1996 fez a sua primeira incursão oficial à região. Hoje, dos 59 que desapareceram apenas Maria Lúcia Petit e Bérgson Gurjão Farias foram enterrados. Ambos os casos frutos de buscas e descobertas dos familiares, com o apoio da Igreja Progressista, da OAB Nacional e dos movimentos de direitos humanos. A morosidade da Justiça brasileira levou à ação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, tendo o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) como o peticionário e como copeticionários o grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo. Está previsto para amanhã e depois na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em São José da Costa Rica, o primeiro julgamento internacional contra o Brasil por crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira caso Gomes Lund e outros v. Brasil, também conhecido como Guerrilha do Araguaia. Lutamos na clandestinidade, enfrentamos todo tipo de tortura moral e finalmente fomos mais uma vez vítimas da decisão inaceitável do Supremo Tribunal Federal de estender a Lei de Anistia aos agentes públicos e privados que perpetraram crimes comuns em nome da ditadura militar. Para o STF são crimes conexos aos crimes políticos. Os agentes do Estado que sequestraram, torturaram e desapareceram com inúmeros brasileiros cometeram crimes de lesa-humanidade. Crimes conexos cometeram aqueles que, como eu, viveram durante 16 anos com nome falso. Falsidade ideológica, isso sim, é um crime conexo, como única forma de sobreviver, se não estaria morta ou desaparecida. O Brasil, hoje uma sociedade democrática, regida pelo estado de direito, signatário de pactos e convenções internacionais, estará finalmente sob a luz dos refletores chamado à responsabilidade pela afronta à nação brasileira e o desrespeito às leis internacionais. Não queremos revanche, queremos justiça. O país precisa conhecer o seu passado e ser responsabilizado pelos crimes que cometeu para que a violência de Estado seja definitivamente uma página virada da História. Está no cenário internacional a última esperança.