Título: Projeto de irresponsabilidade fiscal
Autor: Maciel, Everardo
Fonte: Correio Braziliense, 18/06/2009, Opinião, p. 31

Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal

No Brasil, ideias ruins têm enorme capacidade de sobreviver ou ressuscitar. De tempos em tempos, saem das tumbas projetos para repatriar recursos remetidos ilegalmente para o exterior ou para autorizar funcionamento de bingos.

Era dada como morta a proposta de reforma tributária que tramita na Câmara dos Deputados. De repente, ela ressurge com pretensão de ser aprovada até o fim deste semestre. Como a atual administração federal aprecia largamente os atos de fachada, não raro demagógicos, em desfavor das reformas estruturais, alardeia-se a disposição de ¿fazer a reforma tributária¿ a qualquer custo e de qualquer forma.

Conheci, muitas vezes com participação ativa, todos os projetos de reforma tributária nos últimos 40 anos. O atual é o pior de todos eles, conseguindo a proeza de suplantar, em má qualidade, a esdrúxula ¿teoria do barquinho¿, que permeou conhecido projeto de reforma tributária. As proposições nele inseridas ocupam vasto território de inconsistências e iniquidades. Pretendo destacar algumas delas.

Preliminarmente, o projeto erra por eleger a via constitucional para produzir mudanças legislativas, que, caso fossem razoáveis, poderiam ser implementadas por meio de normas infraconstitucionais, a exemplo do princípio do destino (resolução do Senado), harmonização das legislações do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) ou do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), lei ordinária, e minimização das diferenças entre as legislações do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), lei complementar.

Pretende-se constitucionalizar ainda mais o sistema tributário brasileiro, já massacrado por excessiva judicialização, em detrimento da indispensável segurança que deve presidir as relações entre o fisco e o contribuinte. No projeto em pauta, chega-se ao absurdo de fixar alíquotas interestaduais do ICMS no texto constitucional.

No intuito de simplificar, propõe-se instituir um imposto sobre operações onerosas com bens e serviços, que resultaria da fusão do PIS, Cofins e salário-educação. Esse imposto, apelidado na mensagem de IVA Federal, não conhece paradigma na história tributária. Seria algo a ser definido por lei complementar. Mais grave, reproduz as mesmas vinculações cometidas àquelas contribuições, o que, por um lado, é despiciendo e, por outro, é inadequado, pois prevê vinculações para imposto ¿ o que, ao menos doutrinariamente, é conceito inerente às contribuições.

A extensão da partilha a todos os tributos federais produz a maior contaminação fiscal de que se tem notícia em regimes federativos. Cada exigência de elevação das receitas federais, qualquer que seja o tributo, terá uma repercussão desproporcional sobre o contribuinte, em virtude da obrigatória partilha com os demais entes federados.

A intensa e desarrazoada guerra fiscal do ICMS inspirou a adoção do princípio do destino, que consiste em cobrar o imposto exclusivamente no estado em que ocorre o consumo. Pressupõe-se que a guerra fiscal só existe por conta da possibilidade de transferir para outros estados o ônus do benefício fiscal concedido em uma unidade federada. Ledo engano. Ninguém faz guerra fiscal para prejudicar terceiros, e sim para lograr vantagens para si. Guerra fiscal existe, porque não se cumpre a Lei Complementar nº 24. Há uma espécie de lassidão dos estados prejudicados, amparada pela indiferença da Justiça e do Ministério Público.

Princípio do destino jamais foi adotado, por seus efeitos perversos: aumenta a propensão a sonegar, pela possibilidade de fraudes nas operações interestaduais, privilegiadas por uma baixa alíquota vis-à-vis as internas; sujeita o contribuinte à fiscalização de todos os fiscos estaduais, uma vez que o interesse fiscal extrapola o território da unidade federada em que se localiza o contribuinte; e, sobretudo, desequilibra a Federação pelas perdas que impõe aos estados exportadores líquidos, cuja compensação ficaria à conta de um enigmático fundo que iria prover uma ¿bolsa ICMS¿.

Curiosamente, ao pretender erradicar a guerra fiscal, o projeto, na prática, convalida todos os benefícios fiscais concedidos ilegalmente. Pode-se concluir, portanto, que não haverá guerra por falta de pólvora ou interesse.

É óbvio que temos problemas tributários, como, de resto, todos os países. Esse fato, entretanto, não autoriza concluir que tais problemas devam ser objeto de uma solução qualquer, pois a dramaticidade da doença não autoriza o doente tomar veneno. Estaríamos agora diante de um projeto de irresponsabilidade fiscal?