Título: O poder da sociedade
Autor: Costa, Índio da
Fonte: O Globo, 22/05/2010, Opinião, p. 7

No memorável discurso de promulgação da Constituição de 1988, o deputado Ulysses Guimarães, nos deixou uma lição: ¿A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.¿ Sábias palavras de Ulysses até hoje não colocadas em prática. Há mais de 20 anos os brasileiros têm assistido a sucessivas CPIs, todas destinadas a tratar apenas de um assunto: corrupção. Foi assim desde a década de 80, e até hoje não temos legislação eficiente, capaz de reduzir a corrupção. Algo em torno de 3,5 bilhões de dólares por ano são desviados dos cofres públicos, de acordo com estudo feito pelo professor Marcos Fernandes da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas de São Paulo.

A sociedade quer uma política limpa.

É ela quem dita os movimentos da política.

Tanto que se organizou e fortaleceu os parlamentares que querem mudar para melhor. Muitos achavam impossível, mas o projeto de lei complementar de iniciativa popular, o Ficha Limpa, foi aprovado na Câmara de Deputados e no Senado. Se tramitasse sem suas 4 milhões de assinaturas corria o risco de ser engavetado.

O projeto amplia os critérios de inelegibilidade hoje regidos pela lei complementar 64/90. Apesar de restrito, é moralizador, significa mais um passo para a reforma política que o país exige.

Uma das conquistas votadas pela Câmara na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), além de tipificar com clareza os crimes, foi prever prioridade para julgar os processos dos candidatos com pendências judiciais. Isso desestimula um criminoso de tentar obter imunidade através do mandato, porque ele pode acabar na cadeia mais rápido.

Quem tiver sua sentença confirmada a qualquer tempo perderá o diploma e, consequentemente, o mandato.

No texto inicial havia excessos. Ficaria inelegível quem fosse apenas denunciado, mesmo sem condenação alguma, o que poderia excluir inocentes da vida pública. Também haveria inelegibilidade para pessoas condenadas por decisão de um só juiz, com o risco de transformar fóruns judiciais em arena eleitoral. Fez-se valer a vontade popular e aprimorou-se a proposta. Foi garantido recurso à inelegibilidade em sintonia com o estado democrático de direito que prevê recurso às instâncias superiores. Com o novo texto, a palavra final é de um tribunal ¿ e não a deliberação solitária de um juiz.

Mesmo sabendo que o texto não extingue as necessidades de uma profunda reforma política, o Brasil dá uma demonstração de maturidade democrática.

Já há partidos adotando o Ficha Limpa em suas candidaturas. Falta pouco para colocarmos em prática a lição de Ulysses Guimarães, resgatando uma época em que não se lutava por dinheiro, mas pelo poder de transformar a sociedade para melhor.