Título: 'Crise está no coração do sistema financeiro'
Autor: Ferguson, Neil
Fonte: O Globo, 23/05/2010, Economia, p. 30

Para economista, Brasil tem condições de enfrentar turbulência europeia, mas precisa conter inflação e resolver infraestrutura

O historiador e economista britânico Niall Ferguson, 46 anos, é hoje um dos críticos mais insistentes do governo Obama.

Professor de Economia e História Econômica em Harvard, formado em Oxford, ele escreveu dois livros que veem as crises financeiras globais como consequências da expansão do crédito fácil: ¿The cash nexus¿ (2001, sem edição no Brasil) e ¿A ascensão do dinheiro¿ (2008).

Semana passada, participou da conferência anual do CFA Institute, em Boston, associação sem fins lucrativos de profissionais do mercado financeiro, também presente no Brasil. Ferguson falou ao GLOBO sobre como a queda do euro vai impactar o Brasil e como a crise está redimensionando o poder político no mundo

O GLOBO: Como a crise econômica global está remodelando o mundo em que vivemos? Quais as grandes tendências atuais? NIALL FERGUSON: A primeira grande tendência é o reequilíbrio de poder entre Ocidente e Oriente.

A crise nos EUA e na Europa, a ascensão da China e da Índia como potências econômicas na Ásia, e o ótimo desempenho da economia brasileira são fatores novos decisivos para esse reequilíbrio mundial. A segunda grande tendência é a crise de credibilidade e crédito nas grandes economias ocidentais. Essa é uma crise que está no coração do sistema financeiro e não vai ser resolvida rapidamente. Qualquer solução vai exigir grandes mudanças no mercado financeiro para recuperar a confiança de clientes e investidores e a oferta de crédito que havia antes.

Como o senhor analisa a crise na Europa? FERGUSON: A situação é grave e será solucionada muito lentamente.

Trata-se sobretudo de uma crise fiscal. Os problemas na Grécia mostraram que todas as economias europeias estão interligadas e são de certo modo interdependentes. Os problemas em Portugal e Espanha também precisam ser acompanhados de perto. Mas o maior desafio vai ser, sem dúvida, encontrar soluções para restabelecer o equilíbrio fiscal nos países europeus. Não vai ser fácil.

Vai levar um longo tempo e exigir um duro processo de negociação, tanto dentro de cada nação quanto entre os países europeus, já que uma economia depende da outra.

Como o senhor analisa a economia brasileira e como a crise europeia afetará o Brasil? FERGUSON: A economia brasileira é um caso muito interessante.

Seu ponto mais forte hoje é o fato de ela ter-se tornado muito diversificada, não apenas do ponto de vista de sua composição ¿ já que o Brasil tem uma agricultura poderosa, uma produção industrial considerável, um sistema financeiro em expansão e um crescimento baseado na demanda interna ¿ como do ponto de vista de suas exportações, porque o país tem relações comerciais com diferentes países, sem depender excessivamente de nenhum deles.

O Brasil tem sido fortemente beneficiado pelo crescimento das economias asiáticas, em especial por suas relações com a China. Com a crise na Europa, certamente haverá redução das exportações brasileiras para a região. Mas a economia brasileira tem alternativas para compensar essa queda. A forte demanda interna é um trunfo. Os maiores problemas são a tendência de alta da inflação, que acarreta juros elevados. E o país também precisa de fortes investimentos em infraestrutura.

Os grandes desafios serão manter os programas sociais e vencer os altos índices de criminalidade, incompatíveis com um país que pretende ter respeitabilidade internacional.

O senhor acredita que o reequilíbrio global tornará o Brasil mais influente politicamente? Como o senhor vê, por exemplo, a atuação brasileira no caso do programa nuclear do Irã? FERGUSON: Não há dúvida de que o Brasil está ganhando dimensão no cenário internacional.

E o caso das sanções contra o Irã é exemplar. Para o governo Obama foi certamente muito irritante ver que Brasil e Turquia conseguiram um acordo para oferecer uma alternativa às sanções.

Ficou evidente que o governo Obama já tinha negociado um acordo sobre o esboço de sanções e estava apostando no fracasso das conversas. O governo Obama não quer novos jogadores no cenário internacional.

O senhor considera deficiente a política externa do governo Obama? FERGUSON: Rússia e China estão apoiando sanções evidentemente a contragosto e tendem a atrasar ao máximo a aprovação de qualquer texto. Ficou também evidente que o governo Obama não tem uma estratégia política consistente. Os americanos falam numa via dupla de ¿pressão e negociação¿ e na verdade apenas oscilam de um polo ao outro. Em discurso no Cairo, Obama prometeu uma nova política americana para o Oriente Médio, mas até agora não cumpriu sua promessa. Ele prometeu que seria um cara melhor.

Mas não basta ser melhor que George W. Bush. Precisa ter uma política distinta.

O desempenho de Obama tem sido melhor quanto à economia americana? FERGUSON: Obama foi eficiente no primeiro momento, em evitar um desastre, o que seria uma recessão profunda e sem precedentes. Mas tem hoje um déficit monumental para administrar e precisa reencontrar o equilíbrio fiscal. A recuperação da economia americana é frágil e a crise do euro apenas agrava esse quadro pela possibilidade de contágio. Há uma crise de confiança nos mercados mundiais e em Wall Street. Ainda é cedo para falar-se em double dip recession (uma recessão seguida de uma recuperação leve e outra recessão). Mas a verdade é que essa hipótese não está afastada.

O senhor vê chances reais de a proposta de Obama para a regulamentação do mercado ser aprovada ainda este ano? FERGUSON: Alguma lei vai ser aprovada, resta saber qual. A crise de credibilidade do sistema bancário americano é real e incontornável sem mudança nas regras do jogo. O depoimento dos executivos do Goldman Sachs no Congresso revelou que eles tinham mais compromisso com os acionistas do que com seus clientes e que tudo o que fizeram foi perfeitamente legal.

O Goldman Sachs não é exceção em Wall Street¿ FERGUSON: O problema é exatamente o fato de que eles agiram como todos os executivos em Wall Street. Ficou evidente que o Goldman Sachs foi o grande vencedor da crise de 2008, mas o depoimento dos executivos danificou a reputação do banco. O problema agora é saber se os contribuintes vão continuar dispostos a pagar pelos prejuízos de uma nova quebradeira de bancos.

O senhor acha que a solução seria a criação de uma agência para defender os direitos dos clientes? FERGUSON: Não acredito em agências governamentais. Há tantas¿ E ainda assim a confiança no mercado está em queda.

O problema é como conseguir que as agências sejam eficientes. Ou seja, a pergunta é: quem regula os reguladores? A solução virá pela pressão de investidores, clientes e contribuintes.

Quais são os investimentos que devem ser garantidos pelo dinheiro dos contribuintes e quais são os que não devem ser garantidos? É hora de discutir as regras do jogo. A crise de credibilidade atual já mostrou que as regras precisam mudar