Título: O erro nos gastos públicos
Autor:
Fonte: O Globo, 23/05/2010, Editorial, p. 6

O indiscutível aquecimento da economia brasileira fica mais visível a cada rodada de divulgação de dados.

Segundo a última pesquisa Focus, do Banco Central, feita junto a analistas do mercado, o PIB deverá crescer este ano 6,30% ¿ a aposta foi de 6,26% na sondagem anterior, semana retrasada, e deverá subir ainda mais nos próximos levantamentos. Em termos de ritmo de expansão anualizada, a economia está próxima dos 10% anuais, taxa do ¿milagre¿ dos anos 70, uma impropriedade, a se considerar as condições objetivas de o país processar, transportar e distribuir a produção sem jogar a inflação para as nuvens, nem desequilibrar as contas externas de maneira perigosa.

É algo equivalente a uma panela de pressão esquecida ao fogo, ou a um motor de carro mantido muito tempo em elevada rotação, acima da recomendada pelo fabricante. O reflexo na inflação não é novidade, tanto que o Conselho de Política Monetária (Copom), do Banco Central, elevou a taxa básica de juros em 0,75 ponto percentual para 9,5%, depois de 19 meses em que ela foi cortada ou mantida estável. E novas altas virão, devido às estimativas feitas para o índice de preços: a última sondagem Focus apontou para uma inflação em 2010 de 5,54% ¿ já bem distante dos 4,5% do centro da meta ¿, a 17aelevação seguida na pesquisa.

Há fartos indicadores de uma temerária aceleração econômica, como o aumento substancial na arrecadação de impostos.

De tão visível, o ¿crescimento chinês¿ do Brasil chegou à última edição da revista britânica ¿The Economist¿, para a qual o país alçou voo e atingiu uma altitude que já ameaça a segurança da viagem.

Pela simples razão de que o Brasil não tem a poupança, a taxa de investimento, tampouco o saldo comercial da China. (A mesma revista, pouco tempo atrás, saudara a decolagem brasileira, numa edição cuja capa trazia o Cristo Redentor subindo como foguete).

O atual ciclo de crescimento acima do desejado passou a ser previsto a partir do momento em que o governo usou a crise mundial como ¿licença para gastar¿, termo usado pelo economista Raul Velloso, ouvido pela ¿Economist¿. E gastar basicamente em despesas que se eternizam (salários de servidores, previdência, assistencialismo).

Esta faceta da orgia fiscal patrocinada por Brasília cria óbvias limitações agora que a hora é de fazer o caminho inverso, cortar gastos. A revista também se vale de uma imagem automobilística para dar uma ideia do que acontece nesta fase final do governo Lula. A questão, compara, começa a se parecer com o problema que levou a Toyota a fazer um grande recall de vários modelos: o fato de o acelerador ficar preso no assoalho.

Diante da delicadeza da situação, a Fazenda anunciou um corte de R$ 10 bilhões no Orçamento.

Quem tem a dimensão dos números das contas públicas sabe que isto é nada. E dos R$ 10 bilhões a parcela R$ 7,6 bi é que seria de gastos efetivos. O resto deriva de reestimativa para baixo de despesas obrigatórias.

Quer dizer, corte de ¿fumaça¿, apenas para inglês ver ¿ menos os da ¿Economist¿, atentos a este tipo de manobra.

Para ficar nas imagens automobilísticas, o tipo de gastança feito, de indisfarçável objetivo eleitoreiro, coloca a economia numa situação em que, para não sair da rota, tem de depender do freio de mão do BC ¿ os juros.

Infelizmente, pois isso implica risco de freadas bruscas, com indesejáveis efeitos.

¿Licença para gastar¿ usada na crise coloca governo em camisa de força