Título: Descaso com a maioria
Autor: Steagal, Merula
Fonte: O Globo, 25/05/2010, Opinião, p. 7

O Brasil caminha neste ano para a sexta eleição presidencial da história de sua jovem democracia, reconquistada no final dos anos 80, após mais de 20 anos de regime de exceção. O país vive um grande momento econômico, com surpreendente e vigorosa superação dos efeitos internos da crise internacional de 2008/09. Há avanços notáveis em todos os setores, mas também há muito a ser feito, e não poderia ser diferente na área de saúde pública. Uma das grandes conquistas da Constituição de 1988 foi o Sistema Único de Saúde, que representou mais do que mero passo à frente em relação ao que existia anteriormente. Com justiça, o SUS vem se tornando um paradigma de universalização dos serviços médicos e hoje é copiado e debatido mundo afora. O SUS ainda tem muitos problemas a serem equacionados, conforme admitiu, em entrevista recente, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Segundo ele, o financiamento do sistema é precário e ainda não existe acesso universal à Saúde. As deficiências do SUS naturalmente valem para todas as enfermidades, mas são especialmente graves no caso do câncer terceira doença que mais mata no Brasil, com 500 mil novos casos previstos somente em 2010. Um bom exemplo de descaso do poder público diz respeito ao quinto tipo de tumor mais frequente no mundo, o linfoma, doença que atingiu a ex-ministra Dilma Rousseff, e afeta cerca de 10 mil pacientes por ano. Pouca gente sabe, mas há dois tipos básicos de linfomas: os indolentes e os agressivos no primeiro caso, o desenvolvimento da doença é relativamente lento, entretanto a cura é menos provável do que nos pacientes com formas agressivas. Esses últimos podem levar os doentes rapidamente a óbito, se não tratados, mas, em geral, são mais curáveis, se rapidamente identificados. A maioria dos linfomas é tratada com quimioterapia, radioterapia ou ambos, e em determinadas circunstâncias é necessário o transplante de medula óssea. Os pacientes de linfoma enfrentam inúmeras dificuldades no atendimento pelas instituições vinculadas ao SUS, que vão desde a falta de equipamentos e exames adequados para diagnóstico e avaliação de prognóstico como, por exemplo, a tomografia pelo PET CT ou PET SCAN , dificuldades de acesso aos medicamentos mais modernos, a demora na localização de doadores de medula óssea e a falta de leitos para realização de transplantes. Até a droga que curou a ex-ministra Dilma Rousseff, o Rituximabe, já aprovada pela Anvisa e pela comunidade médica há mais de uma década, não é ainda disponibilizada para os doentes que se tratam no âmbito do SUS, sendo necessária a promoção de ações judiciais para obrigar o Estado a fornecê-la o que só é feito por pacientes que tenham conhecimento de seus direitos. Também vale ressaltar que a liberdade do profissional de saúde em prescrever o medicamento mais indicado para o tratamento do linfoma é cerceada pelos defasados valores de reembolso das APACs as autorizações para procedimentos de alta complexidade. Para se ter uma ideia, tais valores são os mesmos desde 1998! E pior: não há transparência, nem prazos definidos no processo de avaliação e incorporação de novas tecnologias (remédios e exames) para o sistema público. A Constituição é clara e determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Mas, na prática, quem depende do sistema público de saúde tem direito na maioria das vezes a tratamentos obsoletos e menos eficazes. O processo eleitoral começou, os pré-candidatos estão nas ruas. Chegou a hora, portanto, de enfrentar o desafio de ajudar os milhões de brasileiros que sofrem de câncer, em especial os vários linfomas e a leucemia, a superar a doença e o estigma que ainda a cerca. É o momento adequado para o debate de temas relevantes para o futuro dos brasileiros, e a questão do câncer não pode ficar de fora. Quais são as ideias ou propostas dos homens e mulheres que pretendem governar o Brasil nos próximos quatro anos? O que preveem os programas de governo dos partidos políticos? O câncer será tratado com promessas vagas e genéricas ou com a profundidade que um problema tão complexo merece? O Brasil precisa desse debate .