Título: Lula na encruzilhada do veto
Autor:
Fonte: O Globo, 26/05/2010, Editorial, p. 6
A onda de projetos demagógicos aprovados neste período de farra eleitoral no Congresso com a participação da oposição é um desafio à sensatez do presidente Lula. O teste ocorre em torno de um ponto nevrálgico das finanças públicas, os gastos previdenciários ao lado da folha do funcionalismo, o mais poderoso fator de equilíbrio ou desequilíbrio das contas oficiais. Até mais do que as despesas dos servidores, porque, se estas podem ser contidas por uma decisão administrativa de não se conceder reajuste e/ou repor vagas criadas por mortes e aposentadorias, o pagamento dos benefícios previdenciários cresce sem parar, impulsionado pelo simples envelhecimento da população.
Aguardam a caneta do presidente dois produtos da febre da gastança que contaminou com força os políticos no aquecimento préeleitoral: a ampliação do aumento real concedido aos benefícios previdenciários de valor superior ao salário mínimo e o fim do fator previdenciário.
Os efeitos da sanção por Lula das medidas como elas saíram do Congresso para o Planalto seriam ruinosos sobre a contabilidade pública.
Aproveitando-se do clima eleitoral, sindicatos e grupos organizados conseguiram converter um reajuste que seria de 6,14%, segundo proposta do governo, em 7,7%. O índice original já cria uma indesejada sangria nas contas previdenciárias. Ao ser ampliado, aumenta a hemorragia, defendida sob o argumento falacioso da perda de poder aquisitivo das aposentadorias superiores a um salário mínimo. Ora, como elas são sempre corrigidas pela inflação, não houve a tal perda. Sancionado este percentual, o Erário terá de desembolsar por ano R$ 1,5 bilhão a mais do que os R$ 6,5 bilhões necessários para bancar o aumento de 6,14%. Já o fim do fator previdenciário custará outros R$ 4 bilhões/ano. Duas assinaturas presidenciais custam quase um novo Bolsa Família, e num sistema previdenciário que está com um déficit de mais de R$ 40 bilhões.
Como o fator funciona como desestímulo de aposentadorias precoces uma séria distorção na previdência brasileira , extingui-lo é criar mais despesas de maneira instantânea.
O quadro é tão preocupante que mesmo o Ministério da Fazenda, conhecido pela leniência com que administra a política fiscal, aconselha Lula, assim como o Planejamento, a vetar o aumento de 7,7% e a fazer o mesmo como o fim do fator previdenciário. À medida que se eleva a expectativa de vida do brasileiro, mais tempo a pessoa precisa contribuir para o INSS a fim de receber o mesmo benefício. Muito justo. Por isso, acabar com o fator sem se estabelecer, por exemplo, idades mínimas para a aposentadoria, é explodir hoje uma bomba-relógio ajustada para ser acionada daqui a algum tempo.
Guardadas as proporções, Lula se defronta, no final do governo, com uma encruzilhada semelhante àquela com que se deparou ainda na campanha eleitoral de 2002: cumprir o programa aventureiro e irresponsável do PT na economia ou ser sensato? Teve bom senso, assinou a Carta ao Povo Brasileiro, manteve o Banco Central protegido de pressões político-ideológicas, e obteve êxito. Hoje, vetar ou não as duas leis demagógicas e irreais influenciará o mandato do sucessor, não o seu, como era o caso de 2002.
Testa-se, então, não apenas a sensatez de Lula, mas a sua compreensão do que é ser um homem público.