Título: A farra do recall
Autor: Rodrigues, Lino; D'Ercole, Ronaldo
Fonte: O Globo, 27/05/2010, Economia, p. 23

Convocação de donos de carros este ano cresce 45% e país baterá recorde

Com as vendas recordes de veículos no país, a indústria automobilística brasileira caminha para alcançar este ano marcas históricas também de convocação de consumidores para reparos de defeitos de fabricação, os chamados recalls. Depois da Ford, que na semana passada chamou os proprietários dos modelos Ford Ka fabricados entre 2008 e 2010, num total de 166.460 veículos, ontem foi a vez da Mitsubishi Motors comunicar os donos das picapes L 200 Triton, produzidos entre 2007 e 2009. São outros 15 mil consumidores que terão de voltar às concessionárias da marca para trocar uma peça da suspensão, que pode provocar acidentes.

Só nos primeiros cinco meses deste ano já são 24 os recalls convocados pelas montadoras no país, que atingiram 1.052.887 de veículos. Esse número já é 45,4% superior aos 723.817 automóveis envolvidos nas 45 convocações realizadas ao longo de todo o ano de 2009. E, mantido esse ritmo, a tendência é que os recalls ultrapassem a marca de 50 convocações até dezembro, com mais de dois milhões de veículos envolvidos. O que corresponderia a quase dois terços das vendas totais previstas pela Anfavea, a associação das montadoras, para 2010, de cerca de 3,4 milhões de veículos.

¿ O aumento é consequência de uma conjunção de fatores. O aumento da produção, maior vigilância da sociedade e alguns casos de relaxamento no controle de qualidade da indústria ¿ diz Paulo Arthur Goes, diretor de Fiscalização do Procon de São Paulo.

Além dos números elevados, dois casos recentes de recall são citados pelos especialistas como exemplares de amadurecimento do mercado brasileiro: dos modelos Fiat Stilo e dos Toyota Corolla. Pela primeira vez no país, ações de consumidores na Justiça forçaram as montadoras a convocar os proprietários desses veículos para consertos. O recall do Stilo envolveu mais de 52 mil unidades cujas rodas traseiras poderiam se soltar com o carro em movimento. Vários acidentes teriam ocorrido e o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) aplicou multa de R$3 milhões à Fiat. A Toyota só concordou em convocar os donos do Corolla após ter proibida pela Justiça a venda dos modelos em Minas Gerais e da ameaça da proibição ser estendida a todo o país.

¿ Quando se tem um número maior de modelos produzidos há mais risco de de haver problemas de projeto, o que é natural do processo industrial em qualquer lugar. O problema é que no Brasil o recall ainda é tratado como problema de relação de consumo, quando no fundo é questão de segurança no trânsito ¿ diz Rodolfo Rizzotto, editor do portal estradas.com.br e especialista no assunto.

Comunicação ao cliente `é precária¿

Rizzotto lembra que nos Estados Unidos, por exemplo, existe um órgão de investigação, o National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA), que recebe denúncias do consumidor. Além de denunciar as empresas, acompanha o procedimento das montadoras, desde a convocação ao esclarecimento sobre problemas e riscos. O resultado dessa estrutura se reflete em números: em 2009, 15,2 milhões de americanos foram chamados para reparar seus veículos pelos fabricantes.

Aqui, diz Rizzotto, a comunicação ao consumidor ¿é precária¿ e órgãos como o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) não exigem dos proprietários de veículos de recalls comprovante de que o reparo foi feito.

¿ Isso explica o baixo nível de resposta do consumidor aos recalls, em muitos casos inferior a 50%.

Tiago Coelho comprou um Ford Ka financiado em 60 meses em julho do ano passado. Seu carro tem 6.000 quilômetros e ele se diz surpreendido pelo recall. É o mesmo caso da publicitária Mariana Pedrosa, que viu seu sonho do primeiro carro zero quilômetro (um Ford Ka comprado em dezembro) se transformar em risco. Segundo a empresa, uma falha na parte elétrica do modelo pode causar incêndios.

¿ Jamais pensei estar vulnerável. Deveria ter sido informada pela concessionária, não ser surpreendida pela imprensa. Fiquei todo esse tempo exposta e ninguém me disse nada.

COLABOROU Rennan Setti