Título: Amputados e ofendidos pela omissão
Autor: Duarte, Alessandra; Rios, Odilon
Fonte: O Globo, 30/05/2010, O País, p. 14

Diabetes sem tratamento faz com que mais de 40 mil pacientes do SUS percam pés, dedos e pernas no país Qual o preço da pobreza para as doenças do brasileiro? Para mais de 40 mil diabéticos pacientes do Sistema Único de Saúde no país, é um pé, um dedo, uma perna: sem tratamento na fase inicial da diabetes, a enfermidade se agrava a ponto de esses doentes, com a circulação afetada e lesões infeccionadas ou até necrosadas, terem de ser amputados nas emergências dos hospitais. Outros males no Brasil, que poderiam ser evitados ou então controlados, são igualmente agravados pela pobreza e pela negligência do sistema de saúde, como a tuberculose, a hanseníase e a dengue.

A partir deste domingo, uma série de reportagens do GLOBO mostra esse quadro na saúde do país ¿ uma das áreas que mais vão requerer a atenção do próximo nome a ocupar a Presidência da República.

Em muitos casos, o bom atendimento dos pacientes no nível de atenção básica ¿ o que inclui, além dos serviços prestados pelos postos de saúde municipais, os fornecidos pelo Programa Saúde da Família, federal ¿ poderia reduzir em pelo menos 50% o agravamento da doença, além de diminuir também os gastos do próprio SUS.

Já fazia bem uns cinco anos que Geralda Aparecida Ferreira da Cruz sentia dor nas juntas e nas pernas.

¿ Os pés às vezes chegavam a inchar. Eu ia ao médico, passavam analgésico e remédio para reumatismo ¿ conta Geralda, de 72 anos, moradora de Belford Roxo, Baixada Fluminense, e doméstica até dez anos atrás.

Geralda já apresentava sintomas graves de diabetes e ainda não sabia ser portadora dela.

Em fevereiro deste ano, uma ferida apareceu em seu pé esquerdo ¿ apenas dois meses depois, em abril, ela teve de amputar não só o pé, mas a perna esquerda quase até a virilha, pois a ferida, infeccionada, alastrou-se.

A tragédia pessoal de Geralda Aparecida é nacional. Pela falta de atendimento no início da diabetes, cerca de 45 mil diabéticos, pacientes do SUS, já tiveram que ser amputados no país desde 2002, diz o Ministério do Saúde.

O dado, porém, estaria subavaliado, segundo a Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular (SBACV) e a Federação Nacional das Associações e Entidades em Diabetes.

¿ Esse dado está muito subavaliado.

Nossa estimativa é que sejam mais de 40 mil amputações por ano. Não seria possível haver apenas cinco, seis mil por ano no país todo (a divisão dos 45 mil pelos oito anos entre 2002 e 2010), se só na cidade do Rio, só em 2009, houve quase mil amputações ¿ diz Jackson Caiafa, coordenador nacional de Programas Sociais da SBACV.

O dado é subavaliado, diz Caiafa, porque, primeiro, o ministério só trabalha com o que é informado pelos hospitais, dados que já chegariam subnotificados.

Segundo, o ministério não contabilizaria os atestados de óbitos parciais ¿ no caso de amputações altas, a perna precisa receber um atestado de óbito e, às vezes, ser enterrada ¿, informação, por sua vez, registrada pelos governos estaduais.

Alguns estados com maiores taxas de amputação são Rio, Maranhão, Alagoas e Piauí. Em Alagoas, 60% dos casos de diabéticos que chegam aos hospitais de emergência (com o problema chamado de pé diabético, causado pelo fato de a diabetes comprometer o sistema circulatório e provocar lesões nos nervos, o que leva a úlceras e infecções) acabam em amputação. O nível aceitável internacionalmente, porém, é de 9% a 12% para amputações altas, diz a SBACV.

Em 2000, esse nível era de 53% no Rio. Explicando o alto índice de amputações, há a falta de acompanhamento dos pacientes ¿ por unidades de saúde que ou não remarcam consultas de diagnosticados com diabetes; ou não fazem a chamada busca ativa, procurando o paciente caso ele não tenha retornado; ou simplesmente não realizam exames regulares para checar a existência ou o agravamento da doença.

O caso de Geralda da Cruz é ilustrativo da falta de acompanhamento.

Geralda já se sabia hipertensa e portadora de angina há cerca de nove anos, período em que se tratava no PAM de Caxias, na Baixada. Em todo esse tempo, quando passou a ter dor e inchaço nas pernas, ela conta que só lhe receitavam medicamentos para reumatismo e dor.

Até que, em maio de 2009, uma médica do PAM lhe pediu exame de sangue e ela descobriu ser diabética. Menos de um ano depois, a perna foi tomada por uma infecção, ¿era um mau cheiro horrível¿. Após passar a noite sem atendimento no Hospital Getúlio Vargas, Geralda foi amputada no Hospital do Andaraí.

Em AL, só dez próteses por mês

Na última terça-feira, foi a vez de Daniel Rodrigues ir à unidade no Andaraí. Morador da comunidade Nova Divinéia, Zona Norte do Rio, Daniel, de 58 anos, precisava de um curativo na perna esquerda. A direita, ele perdeu há cerca de oito meses. Teve de amputá-la ¿ ele é diabético e sofrera infecção e necrose no pé direito após formigas o picarem.

¿ Agora acho que tiram a perna que sobrou também. Imagina, ficar só até aqui, ó ¿ disse, mostrando a altura dos joelhos.

Na terça, a filha e o genro de Daniel foram a pé empurrando a cadeira de rodas dele até o Hospital do Andaraí. O pé esquerdo lesionado já o havia levado a ser internado este ano ¿ por causa da perda de sensibilidade, outro sintoma da diabetes, Daniel pisara num caco de vidro e só foi perceber a ferida dias depois. No hospital, conseguiu um antibiótico que não achava nos postos de saúde, mas não o curativo no pé ¿ Daniel foi mandado pelo hospital ao posto de saúde de Vila Isabel, onde enfim o obteve.

Em Alagoas, o aposentado Alcides Gomes dos Santos, diabético, há um ano e meio levou uma queda, quebrou dois dedos e rodou seis hospitais públicos em 15 dias, todos em Maceió.

¿ Cheguei a tirar dinheiro do bolso para tentar pagar cirurgia ¿ diz Alcides, de 66 anos, que, ao sair do hospital sem um pé, foi encaminhado à Associação dos Deficientes de Alagoas (Adefal), responsável por distribuir próteses no estado via SUS.

Pelos dados da Adefal ¿ que chegou a criar o grupo Reviver, só para amputados, a maioria diabética ¿, não é possível prever quantas pessoas esperam uma prótese do SUS em Alagoas.

Mas chegam apenas dez próteses por mês. E uma geralmente depende da outra: quem precisa de prótese de perna, por exemplo, também tem de ter a bengala.

Chega a perna, falta a bengala ou não vem a cadeira de rodas.

Hoje, no país, estimativas apontam que só 10% dos amputados conseguem próteses via SUS.

Para o presidente da SBACV, Guilherme Pitta, um dos fatores que levam à falta de acompanhamento é a descontinuidade de programas públicos. Um exemplo de programa que começou a dar certo mas foi descontinuado ocorreu no Rio, entre 2003 e 2006: o Projeto de Atenção Integral ao Portador de Pé Diabético.

Treinando equipes nos postos de saúde, ele fez o número de amputações na cidade cair em mais de 50%. E com menos gastos, pois o atendimento primário é mais barato ¿ o custo de nove amputações é o mesmo que o de 1,5 mil exames de pés.

Coordenadora do Programa Nacional de Hipertensão Arterial e Diabetes Mellitus do Ministério da Saúde (iniciado em 2002), Rosa Sampaio afirma que, segundo estimativa do ministério, há 11 milhões de diabéticos no país hoje. O ministério não tem um dado de quanto a diabetes custaria ao SUS. Só de insulina, porém, Rosa afirma que o governo federal repassa R$ 44,2 milhões por ano a estados e municípios.

Rosa Sampaio diz que o atendimento na rede básica de saúde é realizado: ¿ Os programas de atendimento ao pé diabético existem.

Mas o desenho desses programas fica a cargo dos estados. O que o ministério faz é capacitar as equipes do Programa Saúde da Família (PSF). Já estamos na terceira ação de capacitação delas especificamente em diabetes e hipertensão. Este ano, treinamos 210 médicos que funcionarão como tutores das equipes do PSF pelo país. Hoje, 97% das equipes do Programa Saúde da Família (PSF) realizam acompanhamento de diabéticos.