Título: Sem deter a dengue, fácil é culpar o mosquito
Autor: Maltchik, Roberto; Portela, Marcelo
Fonte: O Globo, 31/05/2010, O País, p. 4
Problemas urbanos e falta de investimentos favorecem disseminação do Aedes aegypti, que infesta 4 mil cidades
BRASÍLIA e BELO HORIZONTE. Diante de uma rotina de armadilhas e descaso, os 60 mil agentes do batalhão de combate à dengue em todo o país perdem lentamente a guerra contra o Aedes aegypti. Fortalecido pelo crescimento desordenado e pela precariedade do saneamento básico na periferia das grandes cidades, o mosquito amplia a cada ano seu raio de ação e faz crescer a sua lista de vítimas. Desde 1990, o transmissor do vírus da dengue deixou para trás um rastro de 5,8 milhões de infectados, sendo 46% nos últimos cinco anos. Em 20 anos, 1.772 pessoas morreram de dengue no Brasil.
Criado na água limpa e parada, e alimentado pelo sangue humano, o Aedes aegypti encontra no calor do país tropical o ambiente dos sonhos: 13,8 milhões de pessoas sem água encanada; 67 mil toneladas de lixo com destinação inadequada e 81% da população vivendo em áreas urbanas. Quatro variantes da dengue já circulam no país, e a violência e a desinformação levam milhares de brasileiros a fechar as portas aos agentes de saúde.
--- Geralmente, na periferia das grandes cidades é onde você encontra essas circunstâncias. As pessoas armazenam água em caixas d"água destampadas ou com a tampa quebrada. Há dificuldades para os agentes entrarem nas casas - explica o ex-gerente de Vigilância e Prevenção de Doenças da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Jarbas Barbosa.
A prova de que as ações adotadas por União, estados e municípios para controlar a dengue são insuficientes se revela com o aumento de localidades com focos da doença. Em 1995, 1.752 cidades estavam infestadas. Hoje, são 4.005 municípios com criadouros do mosquito.
Barbosa ressalta que faltam pediatras treinados para diagnosticar rapidamente a dengue na população infantil, que, ao lado de idosos, lidera a lista de 695 brasileiros que morreram de complicações decorrentes da doença entre 2001 e 2009.
Verba da saúde vai para o banco
Mais grave é a situação de quem depende do Sistema Único de Saúde para se salvar da dengue hemorrágica, que demanda internação imediata. Segundo a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, 20 estados têm menos leitos em UTIs que o recomendado pelo Ministério da Saúde, insuficiência que atinge integralmente o Norte e o Nordeste.
--- Nos casos graves, nós temos problemas crônicos de falta de UTIs, falta de infraestrutura mesmo, como para qualquer outra doença - diz o médico infectologista Alexandre Cunha.
No verão, enquanto o Distrito Federal sofria com uma epidemia de dengue, o governo de José Roberto Arruda, derrubado pelo escândalo de corrupção, mantinha numa aplicação financeira no Banco de Brasília R$320 milhões que deveriam ser investidos na saúde. Resultado: salto de 2.646% no número de casos da doença em relação a 2009 e cinco mortes.
A menos de um quilômetro da residência oficial da Presidência da República, o Palácio da Alvorada, o mosquito recebeu tratamento de gala. A Vila Planalto, bairro de casas simples no centro da capital do país, serviu de estopim para a epidemia. Até hoje, o pintor Denir Pedro da Silva, de 63 anos, mantém uma rotina que facilita a proliferação do Aedes: vasos, entulho, telhas e garrafas plásticas no quintal de casa.
--- Um dia de descuido basta para ele (o mosquito) voltar - disse Denir, logo após a reportagem flagrar uma bacia cheia de larvas em sua porta.
Os descuidos, aliados à negligência das autoridades, fizeram dona Lina Ramalho, de 72 anos, temer pela vida. Foram 20 dias de febre, dores e alucinações:
--- Só via mosquito passando. Antes de surgir o foco, ninguém cuidava disso. Só na minha família, cinco pegaram a dengue.
-- Temos dengue em todas as cidades e defasagem de servidores. Há mais de dez anos não temos concurso na área - diz o subsecretário de Vigilância em Saúde do DF, Allan Kardec.
Pelo segundo ano consecutivo, o quente e úmido Acre vive epidemia de dengue. Entre cada grupo de cem mil habitantes, 3.157 contraíram o vírus, o cenário mais grave do Brasil. Só na capital, Rio Branco, que contabiliza 90% dos casos, 23.200 pessoas foram picadas pelo mosquito. A dengue prolifera em conjuntos habitacionais recentemente contruídos. Mas a recusa às visitas dos agentes comunitários de saúde também dificulta o controle da doença.
--- Em Rio Branco, 30% dos focos estão dentro de casa, no ar-condicionado, atrás da geladeira, em vasos de plantas. Em alguns locais, metade da população não deixa o agente entrar. Só permite a eliminação extradomicílio - diz a coordenadora estadual de endemias, Isamelda Magalhães.
Também houve epidemia na Bahia e em Minas. Em Belo Horizonte, há duas semanas, a produtora de eventos Danielle Freitas Kattah, de 32, começou a sentir dores e febre. Após uma semana tomando remédios para gripe, procurou um hospital, e os exames de sangue confirmaram dengue. Daniele engrossou estatística alarmante na capital mineira: 24.734 pessoas tiveram a doença confirmada este ano; 12.948 notificaram suspeita e aguardam resultado de exames.
O total de casos confirmados antes do fim do quinto mês de 2010 já é 91,57% maior que os 12.911 casos durante todo o ano passado e, nos últimos 15 anos, fica atrás apenas de 1998, quando a cidade contabilizou 86.893 pacientes com a doença.
A Secretaria Municipal de Saúde atribui o aumento dos casos às altas temperaturas e à maior quantidade de chuva desde o fim do ano passado, e diz que, desde outubro de 2009, contratou mais 600 pessoas para o combate a endemias.
Em todo o estado, foram notificados 171.672 casos de dengue, número 109,38% maior que os 81.989 registros de 2009. Em 2010, Minas já confirmou também 87 casos de dengue hemorrágica, com 15 mortes, e outras 20 pessoas perderam a vida entre as 337 que tiveram dengue comum com complicações.
Segundo Kauara Brito Campos, da Coordenadoria de Zoonoses da Secretaria de Estado da Saúde, o aumento da incidência da dengue em 2010 está relacionado a um relaxamento do poder público e da população.
- Passa o período de chuva e as prefeituras mandam os agentes embora. Chega o frio, as pessoas acham que acaba o problema e relaxam. É comum descartarem lixo de maneira inadequada, e os governos não recolhem. Obras públicas e particulares sem cuidado contribuem. O ovo sobrevive até 450 dias sem água. O mosquito põe o ovo hoje, ele pode nascer ano que vem.