Título: O acordo que divide
Autor: Eichenberg, Fernando; Gois, Chico de
Fonte: O Globo, 28/05/2010, O Mundo, p. 39

Asecretária de Estado americana, Hillary Clinton, que defende uma nova rodada de sanções ao Irã, criticou claramente ontem a postura de Brasil e Turquia diante do programa nuclear do país. Durante uma visita ao centro de estudos Brookings Institution, Hillary disse que o governo americano tem "discordâncias muito sérias" com o Brasil, ressaltando, no entanto, que isso não deve comprometer o relacionamento entre os dois países. Mas, para Hillary, as ações adotadas por países como o Brasil para ajudar a encontrar uma solução para o impasse nuclear iraniano deixam o mundo mais perigoso.

Segundo ela, seu país tem a visão - diferente de Brasília - de que o Irã só negociará depois de serem aplicadas novas sanções por parte do Conselho de Segurança da ONU.

- Certamente nós temos discordâncias muito sérias com a diplomacia brasileira em relação ao Irã - disse a secretária de Estado.

Numa conversa com o chanceler Celso Amorim, Hillary disse ter afirmado que "dar tempo ao Irã, permitindo ao Irã evitar a unidade internacional em relação ao seu programa nuclear, torna o mundo mais perigoso, e não menos".

- Nós dissemos(...), achamos que os iranianos estão usando vocês, achamos que é hora de ir ao Conselho de Segurança - disse Hillary. - Mas nossas discordâncias não prejudicam o comprometimento em ver o Brasil como um amigo e parceiro. Queremos com o Brasil uma relação que passe no teste do tempo.

Erdogan: Críticas vêm de invejosos

A declaração é mais um balde de água fria nos esforços diplomáticos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan. Na semana passada, os dois conseguiram do Irã o compromisso de enviar 1.200 quilos de urânio levemente enriquecido para a Turquia e receber, em um ano, 120 quilos de combustível nuclear enriquecido a 20% para ser utilizado na geração de energia e num reator médico. Apesar do acordo, horas depois o Irã anunciou que continuaria a enriquecer urânio. No dia seguinte, Hillary anunciou um projeto de resolução com novas sanções para ser apresentado no Conselho de Segurança da ONU.

Reunidos em Brasília, Lula e Erdogan acusaram ontem potências mundiais como Estados Unidos e Rússia de não aceitar o acordo intermediado com o Irã por inveja. Lula usou como exemplo a fábula da raposa e das uvas, do escritor grego Esopo, segundo a qual, depois de desejar avidamente comer as frutas, mas não conseguir, por causa da altura em que estavam, a raposa diz que não as queria porque estavam estragadas.

- O que aconteceu conosco foi a mesma coisa - disse Lula. - Nós fizemos o que eles estão tentando fazer há muitos anos e não conseguiram.

Erdogan concordou e foi ainda mais direto em sua crítica:

- Aqueles que criticam este processo são invejosos. Acreditamos que o que fizemos era certo e trabalhamos com o que era esperado.

Para ele, todos os países que estão vendo problemas no acerto feito em Teerã detêm armas atômicas.

- Isso é muito contraditório.

Os dois reafirmaram que Brasil e Turquia continuarão agindo juntos para que a comunidade internacional aceite o acordo. Erdogan também revelou que, a exemplo de Lula, recebeu uma carta, nos mesmos termos que o brasileiro, enviada pelo presidente Barack Obama. A carta chegou antes da reunião em Teerã e continha, na essência, os dez pontos do acordo firmado. Ele também disse que está empenhado em convencer outros países sobre a importância do acordo e já enviou cartas a 27 nações - Lula tem atuado na mesma direção.

Lula defendeu que os negociadores da questão nuclear iraniana tenham a cabeça mais aberta ao diálogo.

- É preciso arejar a cabeça dos negociadores. É preciso que a pessoa saia de casa pensando na paz e não na guerra, que não faça o diálogo daqueles que se utilizam da prepotência para não negociar. Com truculência, a gente não resolve nem os problemas de nossa própria casa.

Erdogan frisou que Brasil e Turquia estão trabalhando pela paz e reafirmou que não necessitam de procuração de outras nações para agir, lembrando que Brasil e Turquia são membros não-permanentes do Conselho de Segurança da ONU:

- Também não somos advogados de ninguém.

Lula lembrou que os termos da negociação com o Irã são os mesmos que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e o governo dos EUA gostariam de ver no papel. O premier turco se opôs à possibilidade de novas sanções contra o Irã, como defendem os Estados Unidos.