Título: Um mal que foi do campo às cidades
Autor: Ribeiro, Efrém; Lins, Letícia; Damasceno, Natanael
Fonte: O Globo, 03/06/2010, O País, p. 12

Brasil tem 90% dos casos de leishmaniose visceral na América Latina. A cada ano, 4 mil contraem a doença

TERESINA, RECIFE e RIO. O agricultor José Ribamar Madeira de Albuquerque, de 52 anos, começou a sentir fraqueza e febre há seis meses. Percebia que os pés estavam inchando. Procurou o hospital da cidade onde mora, Miguel Alves, a 120 km ao norte da capital do Piauí, Teresina.

Os médicos prescreveram medicamentos, mas os sintomas voltaram. Ele buscou outros hospitais públicos em Teresina, fez exames, mas não conseguia o diagnóstico sobre o que o afligia. Só depois de recorrer a um laboratório particular é que soube ser um dos quatro mil brasileiros que, a cada ano, contraem o tipo mais comum de leishmaniose, também chamada de calazar.

A quinta reportagem da série ¿Doenças da Negligência¿ mostra que a leishmaniose, incluída entre as chamadas doenças negligenciadas ¿ que prevalecem em condições de pobreza, contribuem para a manutenção da desigualdade e são ignoradas pelos grandes laboratórios farmacêuticos por falta de interesse comercial ¿ é um problema de saúde pública no país e no mundo.

Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), chega a dois milhões os novos casos registrados no mundo, a cada ano, dos dois tipos da infecção ¿ a visceral, mais comum e que tem se urbanizado, e a tegumentar, frequente em áreas silvestres. O Brasil responde por 90% dos casos de leishmaniose visceral notificados na América Latina. A doença vem se tornando emergente entre os portadores do HIV, segundo o último boletim da Secretaria Nacional em Vigilância em Saúde (SNVS). Além disso, o mal vem se expandindo no país.

Em 2000, 88% dos casos de leishmaniose registrados no Brasil estavam no Nordeste. Em 2008, porém, a região passou a ter 48% do total do país, enquanto, no mesmo período, os números evoluíram de 17% para 48% nas regiões Norte, Sudeste e Centro-Oeste. Já quanto ao tipo tegumentar, entre 2000 e 2008 foram notificados 238.749 casos no país. A incidência atual chega a 26.528 novos registros por ano, de acordo com o Ministério da Saúde. Entre 2000 e 2008 a prevalência da doença caiu 41%, de 20,3 casos por cem mil habitantes para 10,5 por cem mil.

Apesar do avanço do parasita que causa a doença, os medicamentos para tratá-la não mudam: a droga contra a leishmaniose é a mesma desde os anos 1940, e é muito tóxica.

Não está disponível nas farmácias, pois as pessoas carentes não têm como comprála.

Mas, segundo pesquisadores da Fiocruz, pelo menos ela não faltaria no serviço público, estando sempre disponível nos hospitais de referência.

Casos autóctones em 20 estados

Tida como doença rural, a leishmaniose visceral vem se urbanizando e já se espalhou pelo país, diz o pesquisador Sinval Pinto Brandão Filho, do Centro de Pesquisas Ageu Magalhães, órgão da Fiocruz em Recife. Ele acompanhou a doença por uma década em Pernambuco ¿ onde, a cada ano, 1,2 mil pessoas são contaminadas, e onde Brandão Filho observou que, em dez anos, a proporção de municípios com o tipo visceral no estado passou de 15,2% para 78,3%: ¿ A forma visceral vem se espalhando pelo país e já foi detectada até mesmo em bairros de classe média de cidades importantes como Belo Horizonte, onde muitos cães morreram (no cão, que funciona como o reservatório do inseto que transmite a infecção para o homem, a doença não tem cura).

O alerta de Brandão Filho sobre o avanço da enfermidade faz sentido. O próprio Ministério da Saúde reconhece que a doença vem se expandindo gradativamente. Em 2008, foram registrados casos autóctones (contraídos no próprio local) em 20 estados.

Em Teresina, o agricultor José Ribamar Madeira foi internado com leishmaniose visceral durante um mês, em um hospital especializado, o Instituto de Doenças Tropicais Nathan Portella, do governo do Piauí. Com a doença, seu peso foi de 60 kg para 40 kg. Após um mês de tratamento, o lavrador, ainda muito pálido, está com 50 kg. Com duas filhas, não conseguiu voltar ao trabalho, e diz que só sobrevive porque, viúvo, recebe pensão deixada pela mulher.

Embora letal nos caninos, a enfermidade pode ser tratada no homem. Caso contrário, resulta em morte. Provoca anemia, fraqueza, aumento do baço e do fígado, e se agrava muito em casos de pacientes desnutridos. O Ministério da Saúde registra que a letalidade da doença vem subindo: de 3,2% para 5,6%, entre 2000 e 2008, registrando-se maior morbidade na faixa etária a partir dos 50 anos, embora a doença seja mais comum entre crianças de até 10 anos, nas quais a letalidade chega a 10%, segundo o pesquisador.

Em 2008, foram feitas 2.996 internações pela visceral, com permanência média de 14 dias nos hospitais públicos. Recentemente, as autoridades sanitárias descobriram mais um motivo para preocupação: a coinfecção Leishmaniose/ HIV (o vírus da Aids), resultado da urbanização da visceral e da ruralização da Aids. Dos 3.852 pacientes confirmados da doença, 136 tinham o HIV, sendo 73,5% homens, com idade entre 20 e 49 anos.