Título: Trabalho fora de hora
Autor: Berta, Ruben; Ramalho, Sérgio
Fonte: O Globo, 03/06/2010, Rio, p. 14

Programa já atende as famílias de 800 alunos que deixavam a sala de aula para aumentar a renda

O menino sequer sabia o alfabeto quando foi matriculado no 1° ano do ensino fundamental numa escola na Zona Oeste.

Na época, com apenas 6 anos, alternava o estudo com a função de ¿garoto do toco¿, da quadrilha que domina o tráfico na região. O serviço: ajudar a rolar o tronco de uma árvore para fechar um dos acessos à comunidade e dificultar a passagem dos carros da polícia. O trabalho infantil é o tema do quinto dia da série de reportagens ¿O X da questão: rascunhos do futuro¿, que retrata o desafio de educar em áreas de risco no Rio.

Nas 150 Escolas do Amanhã, unidades da prefeitura que atendem alunos de favelas e foram contempladas com programas de reforço escolar, já há 800 crianças assistidas pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), do governo federal. São meninos e meninas que exercem as mais variadas atividades para ajudar a complementar a renda familiar. Eles atuam como trabalhadores domésticos, cobradores em Kombis, ambulantes em vias expressas e em atividades ilícitas, como ¿olheiros¿ e ¿soldados¿ do tráfico. Para afastálos desses serviços, o Peti repassa às famílias valores que variam de R$ 22 a R$ 200, de acordo com a renda mensal e com o número de crianças e adolescentes de até 17 anos.

Atualmente, o ¿garoto do toco¿ está com 9 anos e não trabalha mais para o tráfico. Um alívio não só para a família como para a diretora da escola, que em vários momentos perdeu a esperança de recuperar o menino: ¿ Ele tinha só 6 anos, era franzino, mas chegou à escola com todos os trejeitos de um bandido. Não respeitava a mãe, os professores e os colegas de turma. Dizia para todos que trabalhava no ¿toco¿ e que logo seria ¿soldado¿ para andar armado de fuzil. Um dia chamei a mãe dele, que estava desesperada.

Foi uma luta afastar aquele menino esperto e inteligente do tráfico ¿ lembra a diretora.

Nas Kombis, salário de R$ 10 por dia

Há pouco mais de seis anos à frente da escola, ela diz ter ficado emocionada durante a festa do Dia das Mães, em maio passado, quando o menino participou de uma peça teatral montada para o evento. Com os olhos cheios d¿água, a diretora conta que a mãe do garoto a abraçou e disse que ela havia dado um outro rumo para o menino: ¿ Meu filho agora não vai mais ser bandido ¿ disse a diarista.

Na comunidade dominada pela maior facção criminosa do Rio, a barata mão de obra das crianças é disputada ainda por motoristas de Kombis, que oferecem diariamente R$ 10 e lanche para que meninos larguem o banco escolar para atuar como cobradores nas linhas que circulam em Santa Cruz. Os números do Peti mostram que a incidência do trabalho infantil é maior nos bairros da Zona Oeste.

Nesses bairros, meninos e meninas também são atraídos para trabalhar como malabaristas em sinais de trânsito e vendedores de biscoito e refrigerantes em engarrafamentos: ¿ É um grande desafio manter essas crianças nas salas de aula. Não bastasse a violência, que volta e meia impede a realização de aulas, o dinheiro oferecido em troca desses tipos de trabalho serve como atrativo ¿ lamenta a diretora da unidade.

A atuação de crianças em idade escolar na venda de biscoitos e refrigerantes também é comum nas comunidades localizadas às margens das linhas Amarela e Vermelha. No horário do rush, garotos circulam perigosamente entre os carros, carregando sacos repletos de pacotes de biscoito, driblando os motoqueiros nos corredores formados entre os veículos.

Educadores que trabalham em escolas da região admitem que muitos alunos deixam de assistir às aulas para garantir um complemento para a renda familiar.

Há ainda locais, como uma outra escola na Zona Oeste, numa região controlada por milicianos, em que a cultura do trabalho infantil é tão forte, que uma diretora teve de improvisar uma espécie de acordo com um comerciante local, para minimizar os problemas com os alunos.

¿ Existem casos em que não temos como impedir que as crianças trabalhem. Então é melhor ao menos que eu saiba onde elas estão e informar ao empregador se está havendo algum tipo de reflexo no desempenho escolar ¿ desabafa a diretora.

Um dos trabalhos infantis mais comuns e mais difíceis de serem erradicados é o doméstico, reflexo de um problema crônico nas comunidades: a falta de estrutura familiar. Nesses casos, o trabalho não garante aumento da renda familiar. Sem o pai e a mãe presentes, crianças com menos de 12 anos tornam-se verdadeiros chefes do lar. Numa escola da Zona Norte, os afazeres de casa acabam impedindo que muitos alunos participem de atividades no contraturno (o turno fora do horário normal de aulas), um dos princípios básicos do projeto Escolas do Amanhã.

¿ Como vou conseguir que uma criança deixe os irmãos mais novos sozinhos em casa e venha para o colégio? ¿ reclama uma professora.

A rotina de alternar o trabalho doméstico com as aulas é mais frequente entre as meninas, que desde cedo ajudam as mães, limpando a casa ou fazendo comida. É o caso de uma menina de 11 anos que estuda numa escola da Zona Oeste, com três irmãos menores. É ela quem arruma os uniformes e acompanha os garotos no caminho para o colégio.