Título: Saúde é um requisito para o desenvolvimento
Autor: Lins, Letícia
Fonte: O Globo, 04/06/2010, O País, p. 12

Para ex-diretor de pesquisa da OMS, falta de investimento na área afeta setores como educação

Coordenador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz e professor da Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da UFRJ, Carlos Morel já dirigiu o programa de pesquisa em doenças tropicais da Organização Mundial da Saúde, e chama atenção para o elo entre saúde e desenvolvimento econômico. Ele cita um relatório da OMS que aponta que a multiplicação de investimentos em saúde no mundo traria ganhos de US$360 bilhões por ano.

O que são doenças negligenciadas?

CARLOS MOREL: O termo começou a ser conhecido por volta de 2000, graças a dois relatórios, um dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), outro da OMS. Eles propuseram as seguintes nomenclaturas: doenças globais ou tipo 1, que atingiriam a todos, inclusive os países ricos; doenças negligenciadas ou tipo 2, que, embora possam ocorrer no mundo todo, são mais frequentes ou graves nos países pobres; e doenças mais negligenciadas ou tipo 3, que só afetam os mais pobres, como leishmaniose, mal de Chagas... Pelo fato de as negligenciadas e mais negligenciadas atingirem países em que nem governo nem população têm dinheiro para comprar os remédios, a indústria farmacêutica não investe na pesquisa e na produção deles (a OMS chama de ¿Fosso 10/90¿ o fato de que menos de 10% dos fundos mundiais para pesquisa em saúde são para os problemas de saúde que são mais relevantes aos países em desenvolvimento e que representam 90% das doenças no mundo).

Quais os efeitos para os países com doenças negligenciadas?

MOREL: Até dez anos atrás, havia simplesmente falta de perspectiva, no mundo, de surgimento de tratamento. Mas, por volta de 2001, começaram a surgir o que hoje chamamos de ¿parcerias para o desenvolvimento de produtos¿. Uma das primeiras foi criada em 2003 pelos MSF, com dinheiro do Nobel da Paz ganho por eles: a Drugs for Neglected Diseases Initiatives (DNDI), com participação de vários países. O Brasil participa, com a Fiocruz e o Instituto Pasteur.

Como são essas parcerias?

MOREL: Governos e entidades filantrópicas entram com a verba, e as empresas farmacêuticas, com o know-how. E está dando certo. Os remédios estão começando a vir. A DNDI, por exemplo, desenvolveu um antimalárico em conjunto com a Fiocruz.

Além da falta de investimento da indústria, qual o peso das condições de vida para o agravamento dessas doenças?

MOREL: Pobreza é um determinante social. Mas há três tipos de falha interferindo no processo: as falhas de ciência, as de mercado e as de sistema de saúde pública. As falhas de ciência ocorrem quando a ciência ainda não descobriu cura ou vacina para a doença; se descobrissem uma vacina para leishmaniose tão potente quanto a da varíola, mesmo pessoas pobres ficariam imunes. A outra falha é a de mercado: existe o remédio, mas é caro, e às vezes a indústria não produz em larga escala se quem precisa não tem condições de comprar. Então, o Estado tem de distribuir. Já a falha de saúde pública é quando existe o remédio, não é caro, mas o sistema público não consegue distribuir a todos, por problemas de gestão ou por corrupção, por exemplo. É o caso de vacinas na África, ou da vacina contra pólio na Índia. No caso do Brasil, em relação a muitas doenças, como tuberculose e hanseníase, há as três falhas, é tudo junto.

Qual o impacto da existência de doenças em um país para o desenvolvimento dele?

MOREL: Aquele relatório da OMS trata disso. A maioria dos economistas clássicos diz que a saúde de uma população melhora quando a economia melhora. Mas o que a OMS aponta é que a saúde não é só consequência do desenvolvimento: é um requisito para ele. Com saúde, vive-se mais, falta-se menos ao trabalho, ao estudo, então produz-se mais, e a economia ganha. Esse relatório mede isso. O dinheiro que seria gasto com doença pode ir para educação. Uma pessoa com malária fica pelo menos 15 dias de cama; já li que uma menina, no Norte do país, tinha sido reprovada na escola de tanto que faltava, por causa da malária. No Brasil, está havendo um movimento interessante: pesquisas sobre o conceito de ¿complexo industrial da saúde¿. Querem mostrar ao setor privado que saúde pode ser uma chance de negócio. Na balança comercial brasileira, o déficit do setor saúde é US$7 bilhões/ano. A gente importa demais, há aí demanda por novos negócios. O Brasil está querendo se desenvolver, mas esbarra na falta de muita coisa, como mão-de-obra qualificada para a área. Além da falta da própria saúde para a população.