Título: A chegada de um centenário que ninguém comemora
Autor: Lins, Letícia
Fonte: O Globo, 04/06/2010, O País, p. 12

Dois milhões de brasileiros hoje têm mal de Chagas, descoberto há 101 anos

RECIFE e NAZARÉ DA MATA (PE).

Exatos 101 anos após sua descoberta, a doença de Chagas ainda é uma ameaça que anda de mãos dadas com a pobreza e a desinformação. O Brasil recebeu da Organização Mundial de Saúde um certificado que atesta a interrupção da transmissão da doença de Chagas pelo seu principal vetor ¿ o inseto popularmente conhecido como barbeiro (Triatoma infestans) ¿, mas não se livrou da enfermidade, que só tem chances de cura se tratada precocemente.

A incidência vem caindo, de acordo com estatísticas oficiais.

O Ministério da Saúde aponta dois milhões de pessoas infectadas no país. Cientistas do setor estimam que o número chega a três milhões. E a infecção já não pode ser considerada apenas rural. Um trabalho subscrito por sete especialistas e divulgado em Pernambuco alerta para a urbanização da doença. Cerca de um milhão de contagiados reside na periferia de metrópoles como Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o que levaria a uma epidemia urbana.

É o que revela o coordenador do estudo, Wilson de Oliveira Júnior, responsável pelo ambulatório de doença de Chagas e insuficiência cardíaca do Pronto Socorro do Coração/Hospital Oswaldo Cruz, entidades vinculadas à Universidade de Pernambuco (UPE), que acompanha 1.200 pacientes. Cerca de cinco mil pessoas morrem por ano devido a complicações cardíacas provocadas pela enfermidade.

Há 35 anos, o mesmo remédio

De acordo com o Ministério da Saúde, o certificado da OMS concedido em 2006 deveu-se a um trabalho de controle do barbeiro realizado desde a década de 1970. Foram colhidas cem mil amostras de sangue em crianças na zona rural, entre os anos de 2001 e 2008. Números preliminares indicam prevalência de 0,01%, conforme o boletim de abril do Ministério da Saúde.

¿ O percentual é positivo. Inquéritos da década de 1980 indicaram o problema, quando o Brasil tomou conhecimento de que 4,2% da população tinham a doença. Entre as crianças, a prevalência era maior, 18% ¿ lembra o médico, professor de cardiologia da Faculdade de Ciências Médicas da UPE.

Ele lembra que, com o certificado internacional, fica a falsa impressão de que o Brasil livrouse do mal de Chagas, incluído entre as chamadas doenças negligenciadas, que não despertam interesse dos laboratórios.

O remédio contra a doença é o mesmo há 35 anos: o Benidazol, que tem efeitos colaterais grandes. Ele ataca o Tripanossoma cruzi, protozoário transmitido pelo barbeiro, mas não desperta interesse no setor farmacêutico: a multinacional que o produzia cedeu a patente para o Laboratório Farmacêutico de Pernambuco, hoje único a fornecer a droga para o mundo.

O presidente da Associação de Portadores de Doença de Chagas de Pernambuco, Manoel Mariano do Nascimento, de 63 anos, denuncia a falta de remédios auxiliares aos pacientes que têm o coração comprometido.

¿ O Benidazol, tem. Mas não precisamos só dele para ficarmos vivos ¿ diz Nascimento.

O custo dos remédios para o coração chega a R$ 200 mensais.

Sem os remédios, os pacientes terminam precisando de transplantes e marcapassos ¿ com sofrimento maior para o doente e custo adicional ao SUS.

Em Recife, internada no Hospital Oswaldo Cruz, Maria Vicente dos Santos, de 52 anos, perdeu três parentes para a doença.

Só ela, contaminada, sobreviveu.

Pernambuco ocupa o segundo lugar em número de portadores de doença de Chagas no país. Na região canavieira, a 70 quilômetros de Recife, Severina Maria da Silva, de 56 anos, perdeu o pai e o marido para a enfermidade. O filho, Luiz Carlos, de 26, tem a doença. Ela mesma relata cansaço e falta de ar, sintomas de insuficiência cardíaca que aparecem na fase crônica do mal. Mas reluta em fazer exames.

Sua casa tem chão de terra batida e paredes de barro com orifícios por toda parte, onde o barbeiro se esconde: ¿ Já vi potós (barbeiros) nas paredes, nas portas. Basta tocar nele, que está furando a gente.

Aparece no quintal, no milho.

Fui picada várias vezes.

No centro de Nazaré da Mata, Waldecir Vicente de Melo, de 48 anos, é portador da doença há 13. Com o coração frágil, desmaia, mas não quer se operar: ¿ Tenho medo de morrer na mesa de operação. Fico com meus remédios. Assim tenho mais três anos de vida.