Título: Turquia se afasta de Israel e apoia o Hamas
Autor: Malkes, Renata
Fonte: O Globo, 05/06/2010, O Mundo, p. 25

Em hebraico, premier Erdogan exige que israelenses parem de matar

O governo da Turquia decidiu reduzir ao mínimo todos os acordos de cooperação econômica e militar com Israel.

Na mais grave retaliação ao desastrado ataque que matou nove pessoas a bordo da flotilha que tentava furar o bloqueio à Faixa de Gaza, o vice-primeiroministro turco, Bulent Arink, afirmou que todos os contratos serão revistos, reduzindo as relações bilaterais a níveis anteriores aos da década de 90. Em outro golpe duro para os israelenses, o premier Recep Tayyip Erdogan fez ontem um discurso no qual defendeu a resistência do grupo radical islâmico Hamas. Escolhendo a dedo uma temática religiosa, Erdogan acusou Israel de trair sua religião e lembrou os dez mandamentos, exigiu, em turco, inglês e até em hebraico que os israelenses parassem de matar.

¿ Não acho que o Hamas seja uma organização terrorista. São palestinos resistindo por sua própria terra ¿ disse Erdogan ¿ O sexto mandamento diz `não matarás¿. Se vocês não entendem turco, vou falar a vocês em sua própria língua. Vocês não entenderam? Vou falar de novo. Digo em inglês: `vocês não devem matar¿. Vocês ainda não entenderam? Então eu digo na sua própria língua: `lo tirtzach¿ (não assassinar, em hebraico) ¿ declarou.

Segundo a perícia, os nove ativistas mortos na ação marítima levaram, juntos, 30 tiros. Cinco foram baleados na cabeça e a autópsia mostra que quase todos os disparos foram de armas calibre 9 milímetros. As vítimas foram enterradas em diversas regiões da Turquia. Em Istambul, dez mil pessoas foram ao funeral do jornalista Cevdet Kiliçlar, transformado em protesto.

¿Israel assassina! Vá embora da Palestina! Viva a Intifada global! Viva o Hamas!¿, entoava a multidão fora da tradicional mesquita de Bezayit.

Partido islâmico sai fortalecido

A Turquia cancelou também sua participação num congresso que reúne, daqui a duas semanas, representantes de 40 países no Museu do Holocausto, em Jerusalém. Mas, os efeitos do abalo entre Ancara e Jerusalém vão além da diplomacia. Segundo a Associação de Produtores Industriais de Israel, pelo menos 900 grandes empresas israelenses nas áreas química, farmacêutica, médica, de comunicação ¿ e sobretudo, militar ¿ operam hoje na Turquia e, no ano passado, o comércio bilateral entre os dois países movimentou US$ 2,5 bilhões.

¿ Vamos reduzir as relações ao mínimo possível. Mas, dizer que nós riscamos Israel de nossa agenda, isso não é costume de nosso país ¿ advertiu o vice-premier, Bulent Arink.

Mais que prejuízo econômico, analistas israelenses apontam perdas estratégicas a longo prazo ¿ que podem desequilibrar o atual jogo de forças na região. Segundo o correspondente do portal ¿Ynet¿ para assuntos árabes, Roy Nahmias, as declarações defendendo o Hamas comprovam o fortalecimento do partido governista Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco), de orientação islâmica.

¿ Erdogan trabalha para superar desconfianças históricas, herança do Império Otomano, e melhorar relações com o mundo islâmico e árabe.

Sua tendência islâmica se mostrou pela primeira vez quando, em 2006, após a vitória do Hamas nas eleições palestinas, Erdogan preferiu convidar a Ancara uma comitiva do grupo, chefiada pelo líder Khaled Meshaal, em vez de convidar o presidente palestino, Mahmoud Abbas ¿ lembra Nahmias.

Além da renovar laços com a Síria, o premier, no poder desde 2002, tirou ainda proveito da assinatura do acordo nuclear, mediado com o Brasil, no Irã. Segundo pesquisas, a medida ¿ aliada ao episódio da flotilha ¿ fez disparar sua popularidade, justo quando o AKP precisa de apoio a um controverso referendo nacional, marcado para setembro, no qual busca legitimidade para aprovar emendas que reformam o Judiciário, minam a influência política do Exército e dão mais poder ao Executivo.

¿ Não se pode esquecer ainda que a Turquia é membro da Otan. Suas bases aéreas são peça fundamental diante de uma possível intervenção militar contra o programa nuclear do Irã. E mais, Israel precisa dos espaços aéreos turco e grego para rotineiros exercícios de guerra sobre o Mar Mediterrâneo ¿ alerta o analista.