Título: É preciso conter euforia e o superaquecimento
Autor: Eichenberg, Fernando
Fonte: O Globo, 09/06/2010, Economia, p. 32

Diretor da Universidade de Harvard alerta que Brasil não pode pensar que é China ou Índia: expansão "não é sustentável"

WASHINGTON. Na Grécia antiga, húbris designava a autoconfiança excessiva do herói, que ultrapassava perigosamente seus limites, em oposição à prudência. Para Ricardo Hausmann, diretor do Centro para o Desenvolvimento Internacional da John F. Kennedy School of Government da Universidade de Harvard, o Brasil corre o risco de sofrer uma "epidemia de húbris" se não conter "a euforia" e atentar para o "superaquecimento da economia". Criador do método para diagnosticar obstáculos ao crescimento rápido e sustentável, o ex- economista-chefe do BID (1994 a 2000) diz que o Brasil está crescendo acima de seu potencial e sem sustentabilidade. Ele vê influência do cronograma eleitoral no boom brasileiro e diz que o Brasil não pode pensar que, economicamente, é a China.

HAUSMANN VÊ crescimento com rápida deterioração da conta corrente

Como o senhor analisa o atual crescimento da economia brasileira?

RICARDO HAUSMANN: Vejo esse crescimento com preocupação. Com uma preocupação real e, outra, psicológica. A preocupação real é a de que o Brasil, claramente, está crescendo acima de seu potencial. Isso se reflete no fato de que esse crescimento vem acompanhado de uma rápida deterioração da conta corrente. O crescimento do gasto doméstico total é muito superior ao crescimento do produto. Há uma deterioração da conta corrente de mais de 3% do PIB. Isso sugere que, no futuro, a taxa de crescimento do gasto doméstico terá de cair para entrar mais em linha com o crescimento potencial, e esse processo vai requerer ajustes de política fiscal e monetária.

E a preocupação psicológica?

HAUSMANN: Minha preocupação psicológica é a de que agora o Brasil começa a pensar que é uma China ou uma Índia. Não vê que é o mesmo Brasil, mas superaquecido. Isso se deve a um erro de política econômica, o que agrava a situação. Particularmente neste momento, há uma política fiscal e monetária expansiva. Isso está acompanhado desse processo, no qual se pediu ao banco do governo que expanda o crédito. Penso que o Banco Central deve estar vendo as coisas como eu as vejo. O BC entende que a economia está bastante acima de seu potencial.

Que medidas, na sua opinião, deveriam ser adotadas?

HAUSMANN: A solução mais adequada é que o governo adote uma política de diminuição da demanda, usando instrumentos fiscais ou quase fiscais, como empréstimos do BNDES ou Banco do Brasil (BB). Deve-se reduzir o ritmo de expansão desses créditos. Mas não acredito que isso vá ocorrer. A alta da Taxa Selic terá de ser tão mais forte, e com isso haverá enorme valorização do real, nociva à competividade externa do país. É um Brasil superaquecido, com uma Selic bastante elevada e uma moeda muito forte que vai prejudicar o potencial de crescimento da economia a longo prazo.

O Brasil estaria, então, no caminho errado?

HAUSMANN: Minha preocupação é a de que suba à cabeça do governo a ideia de que, porque por um trimestre ou um ano cresceu em ritmos aparentemente chineses, o Brasil tenha a poupança, a infraestrutura e o esforço de investimento público dos chineses. O setor público brasileiro investe 1,5% do PIB, contra quase 18% no caso da China. O Brasil não tem o esforço de investimento em infraestrutura pública que requer uma economia que cresce nesses índices. E isso vai levar ao superaquecimento da economia.

O senhor vê alguma influência o fato de este ser um ano eleitoral no Brasil?

HAUSMANN: Claro, isso está perfeitamente ajustado para que o boom ocorra no ano eleitoral, e que o ajuste tenha de ocorrer no ano pós-eleitoral. Estamos observando uma expansão fiscal e monetária, que tem um cronograma eleitoral. Algo deverá ser feito para que o aquecimento da economia não leve a uma aceleração muito forte da inflação. E se não forem tomadas as medidas fiscais para isso, o BC terá de adotar as medidas monetárias, o que provocará uma Selic muito elevada e um real muito valorizado. O que não é bom para economia. Se não fosse influenciado pela eleição, o governo deveria reagir a esse índice de crescimento com medidas de cortes de gasto público, especialmente em relação à expansão de créditos do BNDES e do BB e ao gasto corrente. O governo deveria estar fazendo planos para aumentar de forma muito mais significativa o investimento público em infraestrutura.

Mas o senhor acredita que isso não vá ocorrer...

HAUSMANN: Não vai ocorrer se o governo pensar que o Brasil é a China e que não há algum problema. Para mim, tudo isso é sinal de superaquecimento, de falta de sustentabilidade e de necessidade de um ajuste da política macroeconômica. Esse crescimento é claramente não-sustentável, como mostra a evolução da conta corrente, porque o gasto está subindo muito mais rápido do que o produto. Veja na compra de automóveis, que é um ajuste do estoque dos consumidores. Os consumidores não comprarão carros todos os anos. Nesse momento, há um boom de compra de automóveis. Se o BC tiver de subir os juros, haverá um colapso na compra e queda na produção doméstica de automóveis, uma queda na demanda residual. Muito do que está ocorrendo agora é um boom não-sustentável de uma economia que está tentando crescer muito acima de seu potencial. E há um governo que acredita que, não que esteja dirigindo além do limite de velocidade, mas que de repente está numa superautoestrada, que na verdade não existe.

Quais seriam os pontos fortes da economia do Brasil?

HAUSMANN: A economia brasileira tem muitos pontos fortes. Tem um setor privado muito diversificado, com muitos setores produtivos muito bons. Mas tem um setor público muito complicado. Tem a taxa de tributação mais alta do mundo em desenvolvimento. Tem as taxas de juros mais altas do mundo. E um dos investimentos públicos mais baixos do mundo. Essa mistura de um governo que cobra muitos impostos, não poupa, investe pouco e deixa uma taxa de juros muito elevada impediu que a economia brasileira tenha crescido em seu potencial. O que o país necessita é moderar o gasto público, aumentar o investimento público e manobrar a política fiscal de maneira que possa administrar o crescimento da demanda agregada sem subir muito as taxas de juros. Se o país não começar a fazer isso, com as notícias do pré-sal e a alta dos preços das commodities etc., haverá problemas que deixarão muito mal o seu setor industrial.

Não há motivos, na sua opinião, para euforia com os novos índices de crescimento?

HAUSMANN: Deve-se responder com prudência a esse crescimento. O país não quer crescer um ano no índice mais alto, mas muitos anos nos índices os mais altos possíveis. Creio que comparações com China, por exemplo, levam a decisões políticas equivocadas. Em grego há essa palavra "húbris". O maior risco do Brasil é o de cair numa epidemia de húbris.