Título: Governo é o atraso
Autor: Nunes, Vicente
Fonte: Correio Braziliense, 21/06/2009, Economia, p. 16

Descaso público causa falta de energia e ergue ponte perigosa. Avanço do Plano Real não é seguido pelo administrativo

Maria, Leny e Bianca: a primeira enfrenta até cinco horas de fila em um posto médico e é analfabeta, como a segunda. A mais jovem já tem escola

Ribeiro, com a bicicleta, observa: os postes existem, mas os fios que conduzem energia não chegaram

São Braz do Piauí (PI) ¿ Do ponto de vista estritamente econômico, os 15 anos de vida do Plano Real, a serem completados em 1º de julho, foram vitais para que o Brasil vencesse seu maior desafio: o de crescer sem despertar o fantasma da inflação. Melhor: a estabilização dos preços permitiu que mais de 20 milhões de pessoas migrassem para a classe média e outros milhões saíssem da miséria absoluta. Bancado pelo tripé metas de inflação, câmbio flutuante e responsabilidade fiscal, o Banco Central pode, inclusive, levar a taxa básica de juros (Selic) para o menor patamar em mais de duas décadas, 9,25% ao ano. Nada disso, porém, apazigua as aflições da aposentada Maria do Socorro e Souza, 70 anos. Com a saúde debilitada, ela enfrenta filas de até cinco horas por um atendimento no único posto médico do município que, em 1994, era apontado com o mais pobre do país.

¿Estamos abandonados¿, lamenta Socorro, que carrega nos ombros o histórico de uma família de mulheres analfabetas, confirmada pela filha Leny, 32, mas que, felizmente, está sendo quebrado pela neta, Bianca, 11. ¿Aqui, só tratamos o básico. No caso de coisa mais séria, só mesmo em São Raimundo Nonato¿, afirma a aposentada. Na maioria das vezes, porém, o doente nem consegue chegar à cidade vizinha, por falta de transporte adequado. São Braz dispõe de apenas uma ambulância. E ela só chegou ao município no início deste ano, tendo rodado, desde então, mais de 60 mil quilômetros. ¿Não sei como a ambulância ainda não quebrou. As estradas daqui estão destruídas, todas esburacadas¿, emenda Leny. Uma viagem até Teresina, a capital do estado, distante 600 quilômetros de São Braz, leva até 11 horas. ¿É um martírio¿, reconhece o empresário Lucas de Macedo Negreiros, presidente da Associação São Raimundense dos Empreendedores de Turismo.

Ajuda do ¿gato¿

Com saúde de ferro, dona Florisbela Alves de Souza, 71, desistiu de esperar pelo governo para resolver seu maior drama, a falta de energia elétrica. Convencida de que não poderia morrer sem ter o prazer de acender e apagar a luz de sua casa quando bem entendesse, recorreu, há um ano, a um ¿gato¿. Pediu ao filho João, 28, que comprasse um bom pedaço de fio e puxasse, de um poste próximo a sua casa, a energia que tanta sonhara. Trabalho executado, os netos hoje se divertem com a pequena televisão que capta imagens por meio de uma antena parabólica comprada com o dinheiro das aposentadorias dela e do marido, Antonio, 70. Como, no entanto, a fiação não suporta muito consumo, além das lâmpadas e da tevê, Florisbela só conseguiu ligar o tanquinho de lavar roupa. A geladeira, de segunda mão, continua encostada, sendo corroída pelo tempo de espera de uso.

A decisão de Florisbela de recorrer ao ¿gato¿ foi uma resposta ao descaso do poder público. Desde o fim de 2004, o governo do estado, usado dinheiro do Banco Mundial, espalhou postes por todo o povoado do Posto da Cigana, um dos mais isolados de São Braz. Tudo levava a crer que as preces da aposentada seriam atendidas. Passados cinco anos, os postes continuam lá, intocados, mas sem os fios necessários para a distribuição da energia. ¿Os políticos comeram o dinheiro¿, diz Florisbela, abrindo mão de um verbo mais forte. Para piorar, o governo federal implantou, próximo à casa dela, o Programa Luz para Todos. Os técnicos responsáveis pelo serviço disseram, porém, que não poderiam puxar a energia até à residência da aposentada porque ela estava sendo atendida por outro programa.

Aos 77 anos, o agricultor José Ribeiro Soares, diz que já desistiu de esperar pela prometida rede de energia elétrica. ¿Conto com a luz que Deus dá e com o fogo do lampião¿, resigna-se. Mas há uma coisa que Soares e as filhas Doralice, 45, e Ivete, 38, não perdoam. Eles tiveram de pagar R$ 10 por dois buracos nos quais foram fincados dois postes próximos a casa deles. Não só a luz não chegou, como os postes desapareceram. ¿Nunca ninguém nos deu uma explicação¿, afirma Soares.

Cadê o dinheiro?

A comerciante Maria das Mercedes dos Santos, 43, concentra sua indignação nas obras para o asfaltamento da estrada que liga São Braz a São Raimundo Nonato, empreendimento que consumiu cerca de R$ 8 milhões dos cofres do governo piauiense. ¿É verdade que o asfalto nos tirou do isolamento¿, frisa. O problema, que Mercês não digere, é que as duas pontes dos tempos da estrada de terra não foram reconstruídas. Muito estreitas e sem estrutura suficiente, são um risco constante de acidente e desabamento. O perigo é tamanho, que uma mineradora que opera por lá construiu um desvio no meio do mato para evitar que seus caminhões tombassem. ¿Aí, me perguntam: cadê o dinheiro das pontes? E eu respondo: certamente, foi parar no bolso de alguém¿.

O mesmo raciocínio vale para o sistema de abastecimento de água encanada. ¿Prometeram tanto que teríamos água em casa. Todo mundo se preparou, comprou pias, tanques, torneiras. Tudo, no entanto, se transformou em enfeite. No máximo, o que passa pelos canos da minha casa é água da chuva que acumulo em uma cisterna¿, conta o técnico em eletrônica, Raimundo da Silva Landim, 48. ¿Além do controle da inflação, queremos ter acesso a serviços básicos. Não podemos ficar disputando água com os animais¿, acrescenta. Para o professor Aurino Soares dos Santos, 46, infelizmente, os governos jogaram a toalha nessa questão da infraestrutura básica. Por isso, acredita, pensar na possibilidade de se ter rede de esgoto é utopia. ¿O tão falado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) não passou por aqui e, pelo que sei, não vai passar tão cedo¿, complementa.

Para quem entregou a Deus a sorte de um dia entrar no mapa dos investimentos públicos decentes, os moradores de São Braz andam exalando revolta. Nos últimos meses, o governo estadual despejou aproximadamente R$ 14 milhões para a construção de uma pista no prometido aeroporto da vizinha São Raimundo Nonato. A promessa é de que o empreendimento trará riqueza para aquela que é apontada como uma das regiões mais pobres do Brasil, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) comparáveis aos de países africanos. ¿Todas as cidades próximas a São Raimundo serão beneficiadas¿, garante o secretário de Infraestrutura do município, Cleisan Ribeiro de Negreiros. Mas a sensação é de que mais um elefante branco está prestes a entrar para a história.