Título: Mudanças necessárias
Autor:
Fonte: O Globo, 14/06/2010, Opinião, p. 6

A um mês de completar duas décadas, o Estatuto da Criança e do Adolescente está a uma grande distância do mundo real. É irrefutável que a sociedade precisa dispor de mecanismos de proteção ao menor de idade. Trata-se de pacto consensual em razão da necessidade de a troca de gerações não sofrer solução de continuidade. Para isso, avanços e conquistas sociais precisam estar inscritos indelevelmente nos dispositivos institucionais do país. Neste aspecto, acesso à educação, à saúde, ao bem-estar, bem como garantia de defesa contra a violência, direitos inarredáveis dos jovens, estão bem assegurados pelo ECA.

O estatuto afasta-se da realidade, no entanto, naquilo que tem de paternalista com os menores infratores. Desde a aprovação do ECA, a sociedade passou por profundas transformações. Principalmente no que diz respeito ao acesso à informação, deu-se no planeta uma revolução que mudou costumes, alterou a maneira de o jovem se relacionar com o mundo e abreviou o período de amadurecimento do ser humano.

Prova disso é que o adolescente, aos 16 anos, já pode votar, por ser considerado cidadão com capacidade de discernir politicamente. Outros direitos do menor são resultado, em grande medida, das garantias asseguradas pela lei orgânica. Mas é no capítulo dos deveres que o ECA se revela um dispositivo defasado, a exigir mudanças que possam adequá-lo ao mundo real.

Ao anteparo do estatuto, o envolvimento de crianças e adolescentes com a criminalidade cresceu assustadoramente. A crônica da violência no país está repleta de episódios que mostram jovens infratores, perfeitamente conscientes das implicações de seus atos, que buscam o respaldo do ECA como proteção para continuar a praticar assaltos, inclusive a mão armada, cometer barbaridades e ligar-se ao tráfico de drogas. Particularmente neste último caso, aproveitando as imunidades conferidas pela lei aos menores, os chefões do tráfico passaram a recrutar meninos, e a armá-los, já na faixa dos 10, 11 anos.

Dá-se, assim, um efeito contrário ao espírito da lei. Em vez de proteger o jovem e ajudar a resgatá-lo da rota do crime, o estatuto acaba se tornando um instrumento de formação de "mão de obra" preferencial para o tráfico e de manutenção de crianças e adolescentes nos desvãos da marginalidade.

A palpável necessidade de mudanças no estatuto, particularmente a que trata da redução do limite da inimputabilidade de 18 para 16 anos, é objeto de ações no Congresso. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado já aprovou projeto neste sentido. Na Câmara, as comissões analisam outra importante alteração no corpo da lei - a eliminação do dispositivo segundo o qual o prontuário do menor infrator é zerado quando ele completa 18 anos. São mudanças cruciais, mas que incompreensivelmente não avançam nas duas Casas.

Deve-se ressaltar, no entanto, que aumentar a abrangência da lei para fins punitivos, por si só, não resolve o problema dos menores infratores. É preciso que, paralelamente, se proceda a uma reformulação completa nas instituições correcionais. Prender os adolescentes e confiná-los em penitenciárias dominadas por criminosos de alta periculosidade terá apenas o dom de transformá-los irremediavelmente em bandidos irrecuperáveis. Trata-se, portanto, de enfrentar a questão do menor infrator de forma estrutural, com mudanças no ECA e no sistema de correção - a par, evidentemente, das obrigações do Estado (e dos pais) com a educação e a formação moral.