Título: Direito e reparação
Autor: Sottili, Rogério
Fonte: O Globo, 21/06/2010, Opinião, p. 7

No dia 13 de janeiro deste ano o presidente Lula sancionou a lei nº 12.190, que concede indenização por dano moral às pessoas com deficiência em razão do uso da talidomida. Para os direitos humanos, a lei tem um simbolismo especial: com ela, o Estado reconhece sua responsabilidade pela violação do direito à prevenção de agravos à saúde e assume diante da sociedade o dever de reparar as pessoas atingidas.

A talidomida é um anti-inflamatório que foi utilizado a princípio para combater enjoos de gravidez. A descoberta, em 1961, de que causava danos de encurtamento dos membros dos fetos ¿ focomelia ¿ ocasionou a imediata suspensão de sua venda em todo o mundo.

No Brasil, a restrição ao comércio aconteceu com quatro anos de atraso. Coincidência ou não, foi também em 1965 que se registraram efeitos terapêuticos da substância para combater os sintomas da hanseníase, o que levou a uma segunda onda de consumo da talidomida no Brasil. Assim, tivemos pelo menos duas gerações de ¿filhos da talidomida¿, que adquiriram deficiência como resultado, em grande medida, de políticas públicas equivocadas.

Equivocado foi ainda o tratamento dispensado pelo Estado brasileiro às pessoas que contraíram hanseníase.

Em 1930, foi instituído no Brasil o isolamento compulsório dos pacientes de hanseníase, que vigorou até 1976. Apesar disso, até 1986 alguns doentes continuaram sendo obrigados a se internar, reforçando o velho estigma que a doença carrega desde os relatos bíblicos.

Esse tipo de política isolacionista dava à polícia sanitária o direito de levar à força os doentes para os chamados hospitais-colônia. As pessoas atingidas foram exiladas compulsoriamente, separadas de suas famílias, banidas, e, quando tinham filhos, estes eram afastados ao nascer. Com o fim do método do isolamento e a abertura das colônias, foram muitos os casos de pacientes que permaneceram nas instituições, por abandono ou perda dos laços familiares, por falta de condições econômicas e, ainda, devido à forte discriminação.

Brasil e Japão são os únicos países que criaram políticas para indenizar as pessoas atingidas pela hanseníase que foram submetidas ao isolamento compulsório.

O processo de reparação começou em 2007, com a aprovação da lei nº 11.520/2007, que instituiu a Comissão Interministerial de Avaliação para analisar os requerimentos da Pensão Especial. Têm direito todas as pessoas que tiveram hanseníase e foram submetidas a isolamento e internação compulsórios até 1986.

Em dois anos e cinco meses, a Comissão analisou 9.800 requerimentos.

Destes, 4.768 foram deferidos, 623 foram negados e cerca de 4.400 processos ainda aguardam diligências para serem concluídos. Os números estão muito acima das previsões iniciais do Movimento Nacional de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), principal organização social para o tema, que estimava entre três e quatro mil o número de pessoas com direito à pensão. No caso da talidomida, são 556 as pessoas reconhecidas como portadoras da síndrome de talidomida, que estão cadastradas pelo INSS e recebem pensão por danos físicos a partir da lei nº 7.070/1982.

Tanto nas políticas de isolamento compulsório das pessoas atingidas pela hanseníase, quanto nos casos de síndrome de talidomida, o que se vê são exemplos de violações dos direitos humanos perpetradas por meio de políticas públicas. Em ambos os casos, a reparação pelos danos morais reflete o reconhecimento do governo federal de que as pessoas tiveram graves prejuízos em suas vidas. A instituição da pensão e da indenização, mais do que ser uma compensação econômica, é uma forma de ¿desculpas públicas¿. A concretização dos direitos humanos é sempre um projeto a ser perseguido, a sociedade e o Estado são responsáveis por sua promoção e defesa.

Sempre haverá avanços a serem conquistados, daí ser fundamental o debate na sociedade e a inserção dos direitos humanos cada vez mais na agenda política nacional, com resultados concretos. Para as pessoas atingidas pela hanseníase e apartados da família e da vida em sociedade, assim como para as pessoas que adquiriram deficiência em virtude da síndrome da talidomida, a reparação é simplesmente o primeiro passo. Superar a discriminação há de ser o próximo.