Título: De órfãos da pobreza a filhos adotivos da miséria humana
Autor: Gois, Chico de
Fonte: O Globo, 20/06/2010, O Mundo, p. 33

Pequenos haitianos dados por suas famílias são explorados como escravos

UM MENINO rest¿avec brinca em Porto Príncipe: explorados e maltratados

IRMÃ APARECIDA com crianças rest'avec na escola em que trabalha na capital haitiana: refúgio de maus-tratos e esperança de futuro

PORTO PRÍNCIPE. Pelas ruas de Porto Príncipe, a cena é comum: meninas com tranças nos cabelos, meninos com material debaixo do braço, uniformes impecáveis, sapatos limpos, sorriso, algumas delas dentro dos tap-tap ¿ o transporte coletivo utilizado na cidade. São os estudantes, um retrato que, para muitos, é a cara do Haiti, mesmo depois do terremoto de 12 de junho que matou cerca de 250 mil pessoas, segundo números das Nações Unidas, e deixou aproximadamente um milhão de desabrigados.

Mas há outra face do país, que não aparece nas ruas, e é motivo de tabu entre os haitianos. Atende pelo nome de rest avec vous, ou, como dizem por aqui, simplesmente rest¿avec ¿ ¿fique com você¿. São crianças entregues pelos pais biológicos a parentes ou vizinhos porque não conseguiam criá-las. Órfãos com pais e mães vivos, na maioria dos casos acabam se tornando escravos da nova família, e até mesmo objeto sexual.

No Haiti, estima-se que 80% da população estejam abaixo da linha de pobreza. Apesar disso, é incomum ver homens sem camisa pelas ruas ou crianças sem roupas. Todos fazem questão de se vestir bem na medida do possível, inclusive com sapatos engraxados ou, quando não é possível, os haitianos costumam lavá-los ao deixarem as ruas de terra por onde andam. Mas para os rest¿avec, não há nada disso. O comum, para esses meninos e meninas, é vê-los sem roupa pelos acampamentos ou, no máximo, com uma camiseta, sem a parte de baixo.

Mesmo os muitos pequenos têm de trabalhar

Como são considerados a ¿sobra¿ da sociedade, os rest¿avec ficam com o que sobra ¿ se isso acontecer. Desta maneira, numa sociedade machista, na qual o espancamento das mulheres é quase uma questão cultural, primeiro alimentam-se os homens, depois os filhos, as mulheres e, se restar alguma comida, os rest¿avec.

São eles também que fazem todo o trabalho da casa ¿ levantam mais cedo para buscar água em alguma bica, limpam, cuidam dos outros filhos, ajudam a carregar os alimentos doados. E não importa a idade. Muitas dessas crianças são dadas a outras famílias com 3, 4 anos ¿ e já têm de trabalhar.

No Haiti, a mortalidade infantil é de 58,7 por mil nascidos vivos ¿ no Brasil, é de 21,86. A taxa de fertilidade é de 3,72 por mulher, enquanto no Brasil é de 2,19. Os homens abandonam as mulheres facilmente e, para elas, muitas vezes não resta saída a não ser doar o filho. A cultura da violência, aliás, chega até mesmo às escolas. Irmã Maria Aparecida Scatolin, uma paranaense há 13 anos no Haiti, conta que é comum professores baterem nos alunos. Os rest¿avec apanham de chicote.

Rejeição nas escolas após completarem 8 anos

Irmã Aparecida mantém desde 1999, com outras freiras, uma escola destinada só aos rest¿avec. Atualmente, atende a 60 crianças. Para convencer os responsáveis a ¿emprestá-las¿ por um período, as freiras dão alimentos aos pais adotivos. Essas crianças e adolescentes, mesmo que quisessem, não seriam admitidas em outras escolas ¿ depois dos 8 anos, elas não são mais aceitas na rede.

¿ Temos de trabalhar com as famílias e não apenas com as crianças. E, para isso, o incentivo tem de ser também com alimentos, e não apenas com palavras ¿ descreve a religiosa.

A embaixatriz Roseana Kipman, que está no Haiti desde 2006, afirma que numa sociedade com poucas oportunidades para seus membros, são as famílias que escolhem quem estuda ou não. E os rest¿avec, na maioria das vezes, são preteridos.

¿ As famílias escolhem quem julgam que tem mais possibilidade de ajudá-las mais tarde ¿ disse ela.

A taxa de analfabetismo no Haiti é uma das maiores do mundo. Da população acima dos 15 anos, somente 52,9% são alfabetizados ¿ no Brasil, esse percentual atinge 88,6%. Irmã Aparecida, acostumada a lidar com a tragédia diária do país onde vive, só lastima que depois do terremoto o número de rest¿avec vá aumentar ¿ e muito.

¿ Infelizmente, é o que vai acontecer. Afinal, muitos pais morreram...

O tenente-coronel Adriano de Souza Azevedo, responsável pela ação social desenvolvida pelo Exército brasileiro no Haiti, diz que a falta de carinho com as crianças é uma das coisas que mais chocam os militares.

¿ Quando chegamos a uma comunidade, sempre aparecem crianças para pegar na nossa mão e perguntar se não queremos ser o pai delas. É de cortar o coração.