Título: Falei pra minha mãe e levei uma surra
Autor: Duarte, Alessandra
Fonte: O Globo, 27/06/2010, O País, p. 17

Vítimas de abuso falam sobre o trauma da convivência familiar

X., de 49 anos, não sabe se o que tinha era depressão, mas diz que nunca teve ¿leveza¿. Até o ano passado, quando contou pela primeira vez a alguém que fora abusada pelo pai ¿ 42 anos antes, quando ela tinha por volta dos 6:

¿ Quando aconteceu uma segunda vez, até falei para minha mãe, e disse que ele fazia isso também com minha irmã, um ano mais nova. Levei uma surra, e minha mãe foi perguntar para minha irmã se era verdade, mas ela negou. Quando eu tinha 8 para 9 anos, arranjei um trabalho de babá e saí de casa, fui morar na casa onde ia trabalhar.

Até hoje, X. não dorme mais na casa dos pais:

¿ Hoje ele já está velho e caduco, graças a Deus. Mas não durmo, nem deixo minha filha passar a noite lá, pode ser aniversário, Natal ou Ano Novo. Meus pais nem sabem onde eu moro. Teve um dia em que fiquei sozinha com ele, e ele me perguntou se eu nunca ia perdoá-lo. Respondi: ¿Esquece isso¿.

A filha, hoje com 12 anos, teve de ser atendida no Núcleo Especial de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítimas de Violência Doméstica e Sexual de São Gonçalo (Neaca) porque, aos 8, sofreu uma tentativa de violência sexual por um vizinho:

¿ A família dele disse que ia prestar queixa contra mim por calúnia. Fui antes à delegacia e o denunciei. Mas ele fugiu.

Y., de 30 anos, outra a ser atendida pelo Neaca, também viu vizinhos se voltando contra ela ao denunciar que o ex-marido, hoje preso, abusava das filhas dela de 9 e 11 anos, da sobrinha dele de 9, e de outras meninas da vizinhança. No colégio, a filha de 9 tem de ouvir brincadeiras de que ¿não é mais mocinha¿.

¿ E a mais velha me disse que não sabe o que é pior: ser filha do estuprador da rua (Y. foi estuprada na época em que engravidou da filha mais velha, e não sabe quem é o pai dela até hoje) ou do que a estuprou em casa ¿ disse Y.

A contabilização do número de casos de violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes é difícil, e a subnotificação é alta. As denúncias recebidas pelo Disque 100, ou por outros serviços do tipo, são encaminhadas para os conselhos tutelares de cada localidade (além das denúncias feitas diretamente aos conselhos). Há ainda as queixas realizadas em delegacias, e as notificações vindas de hospitais que atendem a menores com sinais de violência.

No entanto, não é feita uma unificação dos dados sobre casos confirmados pelos conselhos e pelas delegacias: nem pela Secretaria de Direitos Humanos, nem pelo Ministério da Justiça. Em muitos estados, esse banco de dados também não é feito pela Justiça, como no caso de São Paulo, onde o Tribunal de Justiça do estado afirma ter apenas o número de casos de estupro, mas não o recorte desse número por faixa etária da vítima, ou pela relação entre agressor e vítima (se há parentesco ou não).