Título: Um país de terno e gravata
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Fonte: O Globo, 27/06/2010, O Mundo, p. 37

Apesar de leis que asseguram igualdade, japonesas têm dificuldades no mercado de trabalho

JOVENS PROFISSIONAIS num banco no distrito financeiro de Tóquio: mundo corporativo dá as costas às mulheres, que ocupam somente 10% dos cargos de gerência no país, em descompasso com outras nações desenvolvidas

UMA ATENDENTE de uma loja em Hokkaido: acesso mais fácil a postos de menor qualificação e salário mais baixo

Claudia Sarmento

Duas coisas chamam a atenção no metrô de Tóquio na hora do rush. A primeira é o silêncio da multidão organizada, que não fala nos celulares dentro dos trens e entra e sai sem empurrões. A segunda é que a massa veste terno e gravata, como se as mulheres não tivessem saído para trabalhar. A impressão é exagerada, mas não está totalmente equivocada. As japonesas são livres para buscar emprego em qualquer área, têm direitos garantidos por lei e o mesmo acesso à educação que seus colegas do sexo oposto. Mas sua ascensão no mercado de trabalho é lenta, apesar de toda a modernidade que o Japão simboliza. O lema do ¿você pode ter tudo¿, propagado pelas adoradas personagens de ¿Sex and the city¿ ¿ ícones de uma geração que quer o amor e a carreira ¿ ainda é coisa de cinema para as japonesas.

Nas empresas do país, apenas 10% dos cargos de gerência são ocupados por mulheres, um índice mínimo se comparado aos 42% dos Estados Unidos e aos 35% do Reino Unido, segundo a ONU. É um número facilmente comprovado em ambientes corporativos: as reuniões são dominadas por homens, mesmo em setores tradicionalmente mais flexíveis, como agências de publicidade.

Em 101º lugar no ranking da igualdade

No último relatório anual sobre as desigualdades entre homens e mulheres (Global Gender Gap Index), divulgado em 2009 pelo Fórum Econômico Mundial, o Japão ficou em 101º lugar num ranking de 134 países (quanto mais perto do fim, pior a situação). Um vexame para quem ocupa o posto de segunda maior economia do mundo.

¿ A minha geração encarou obstáculos que as jovens não enfrentam hoje, e pelo menos as mulheres já ocupam cargos de nível médio. O que precisamos ver é se conseguirão chegar ao topo ¿ disse ao GLOBO a prefeita de Yokohama, Fumiko Hayashi, de 64 anos, primeira mulher a governar a segunda maior cidade japonesa. ¿ A nova situação econômica do país impõe desafios, e tem de haver maior participação em todos os níveis.

Colar de pérolas, tailleur branco e um jeito formal de falar, Fumiko é uma senhora japonesa típica, mas apenas na aparência. Suas conquistas no mundo dos negócios, antes de entrar para a política, causaram espanto num país em que executivas bem-sucedidas são tema frequente de reportagens, não por sua competência, mas por serem mulheres. Mesmo em companhias consideradas politicamente corretas, como a Panasonic, apenas 5% dos 38 mil gerentes são do sexo feminino. Fumiko é um caso raro: foi presidente da BMW em Tóquio e da rede de supermercados Daiei. Na Nissan, dirigiu a poderosa divisão de vendas, vencendo num meio particularmente masculino, o das montadoras. Quando saiu da faculdade, nos anos 70, as japonesas só tinham três funções numa empresa: servir chá, fazer cópias de documentos e comprar cigarros para a diretoria. Ela não esconde que comeu o pão que o diabo amassou, mas evita declarações feministas ¿ outro tabu no país.

¿ Até hoje as japonesas não têm as mesmas oportunidades, nem em termos salariais, nem quando falamos de promoções ¿ confirma Parissa Haghirian, especialista em administração internacional e autora de livros sobre o universo corporativo japonês.

Mas não adianta apenas acusar os japoneses de machismo e encaixar as japonesas no estereótipo da mulher oriental submissa. É preciso entender como o Japão se estruturou no pós-guerra, crescendo de um jeito que hipnotizou o mundo, até a crise da década de 90 acabar com a farra. Os problemas econômicos dos últimos anos vêm trazendo transformações, mas o personagem do sararimen ¿ versão local do inglês salary men (assalariado) ¿ ainda é marcante: são empregados que sonham em ficar na mesma companhia o resto da vida, só usam terno preto, camisa branca e gravata escura, trabalham 15 horas por dia e, após o expediente, saem para beber. Um sistema movido a testosterona.

¿ É difícil para uma mulher ser vista como uma igual. As japonesas, apesar de altamente qualificadas, não conseguem equilibrar a vida pessoal e a profissional ¿ diz o sociólogo James Farrer, da Universidade de Sophia, em Tóquio.

As creches públicas têm longas filas de espera, e as particulares são caras demais, complicando a vida das mulheres que querem trabalhar depois dos filhos. Além disso, o sistema tributário favorece a cultura da dona de casa: se a mulher trabalha em período integral ou ganha bem, o marido paga mais imposto.

¿ Não temos incentivos sociais para que a mulher trabalhe, como na Europa. E não são todos os homens que ajudam nas tarefas domésticas. No Brasil, a classe média tem empregada, né? Não gosto desse sistema, mas é uma saída para quem quer trabalhar fora ¿ diz a professora Satoko Nochida, 33 anos, solteira.

Diplomadas, mas mal aproveitadas

Além das consequências negativas para a economia, diz Parissa Haghirian, com cerca de metade das mulheres com nível universitário não conseguindo pleno aproveitamento no mercado de trabalho, o quadro agrava uma crise demográfica dramática: a população japonesa está encolhendo em ritmo acelerado.

¿ Apesar de as japonesas terem de abrir mão da carreira pela maternidade, o país tem uma das taxas de fertilidade mais baixas do mundo (média de 1,37 filho por mulher). As pesquisas mostram que, nos países onde a participação da mulher no mercado é alta e apoiada pelo governo, esse índice sobe ¿ diz a especialista.