Título: Novo desafio no mar de Gaza
Autor: Malkes, Renata
Fonte: O Globo, 25/06/2010, O Mundo, p. 34

Libaneses ignoram alertas de Israel e preparam barcos com ajuda ao território palestino

PALESTINOS ENSAIAM recepção comemorativa com barcos decorados para esperar a flotilha libanesa no porto da Cidade de Gaza: rota proibida passará por Chipre

EM BEIRUTE, a líder do barco feminino, Samar al-Hajj, garante: haverá navegação

Não é Ismail Haniyeh nem Mahmoud Ahmadinejad, ou mesmo o temido líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah. Os maiores adversários do Exército de Israel nos próximos dias têm nomes femininos e delicados: Julia e Mariam ¿ duas embarcações libanesas que, inspiradas na Flotilha da Liberdade, interceptada no mês passado, estão dispostas a zarpar rumo à Faixa de Gaza e furar definitivamente o bloqueio israelense imposto ao empobrecido território palestino. Atracados no porto de Trípoli, no norte do Líbano, os barcos acertam os detalhes finais de uma jornada que, segundo analistas, pode arrastar o Oriente Médio de volta aos violentos dias da Segunda Guerra do Líbano, há quatro anos.

O plano foi idealizado pelo empresário palestino Yasser Qashlaq e organizado pelo grupo Jornalistas Sem Limites. Para driblar a legislação do Líbano ¿ que vive em estado de guerra com Israel e, portanto, não permite que seus navios naveguem direto para Gaza, considerada território ocupado pelos israelenses ¿ a estratégia é navegar para a ilha de Chipre, no Mar Mediterrâneo, e, somente de lá, seguir viagem rumo à Faixa de Gaza.

O primeiro barco, Julia, já recebeu autorização do Ministério dos Transportes do Líbano para zarpar rumo a Chipre, levando alimentos, material de construção, artigos escolares e brinquedos, além de 25 ativistas europeus e 50 jornalistas. Segundo o organizador da empreitada, Thaer Ghandour, o navio será rebatizado com o nome de Naji al-Ali, numa homenagem ao famoso cartunista palestino assassinado em Londres, em 1987.

¿ Estamos prontos para partir. Só falta a checagem final nos aspectos de segurança. Estamos determinados a seguir em frente e provar que a missão é humanitária, e não temos qualquer viés político. As ameaças de Israel não assustam. Os libaneses estão acostumados, e podemos contornar imprevistos logísticos¿ afirmou Ghandour, ao GLOBO, por telefone.

Ele se referia à ameaça cipriota de impedir que os navios zarpem de seu território. Desde a desastrada ação militar que interceptou o barco turco Mavi Marmara, matando nove pessoas, o governo de Chipre proibiu a saída de qualquer embarcação com destino a Gaza. Os organizadores da jornada marítima, no entanto, não parecem preocupados. Fontes em Beirute garantem que, caso o governo de Chipre impeça a saída dos navios, a solução é partir do norte do Chipre ¿ controlado pela Turquia, e cuja administração não é reconhecida pela comunidade internacional.

Disputa por gás natural eleva tensão

O segundo barco libanês a se lançar na empreitada, o Mariam ¿ cujo nome, segundo os organizadores, pede proteção à Virgem Maria ¿ ainda não recebeu autorização do governo libanês para seguir viagem. Comandado pela advogada e ativista de direitos humanos Samar al-Hajj, o navio será tripulado apenas por mulheres ¿ 50, sendo 30 libanesas. A notícia causou irritação no governo israelense: Samar é mulher de um ex-oficial da inteligência do Hezbollah acusado de envolvimento no atentado que matou o premier libanês Rafiq Hariri.

¿ O inimigo sionista será derrotado por mulheres. Vamos ver o que terão coragem de fazer conosco ¿ disse ela, em tom desafiador.

A primeira baixa do grupo feminino teria sido a cantora xiita Haifa Wehbe, diva da música pop libanesa, cuja participação no protesto em alto-mar teria sido vetada pelo Hezbollah. Mesmo diante dos percalços, a iniciativa ganhou o apoio da cineasta brasileira Iara Lee, uma das passageiras do barco atacado no mês passado.

¿ Até freiras estarão nos barcos libaneses! Estou muito feliz com a coragem das libanesas. Obviamente os israelenses já estão inventando que os barcos são do Hezbollah. A especialidade de Israel é contar lorotas ¿ disse Lee, que ainda não descarta articular um navio representando o Brasil na próxima flotilha internacional, provavelmente em setembro.

Fontes da inteligência israelense ouvidas pelo GLOBO em Tel Aviv afirmam que o barco Julia é, na verdade, de propriedade síria ¿ e teria sido comprado por um empresário da iraniana Amir A. Shipping, que o administrava com uma bandeira sul-coreana. Temendo que os xiitas do Hezbollah estejam por trás da iniciativa, o governo de Israel pediu às Nações Unidas e aos Estados Unidos que intercedam para evitar que os barcos cumpram o objetivo. O ministro da Defesa israelense, Ehud Barak, advertiu o Líbano, afirmando que a responsabilidade por qualquer incidente será do governo do premier Saad Hariri.

Enquanto analistas dos dois lados da fronteira acreditam que a tentativa de furar o bloqueio à Faixa de Gaza possa ser a centelha que vai deflagrar um novo conflito entre Israel e o Hezbollah, a guerra da retórica parece já estar em curso. O Líbano retrucou, numa carta às Nações Unidas, as ameaças israelenses contra os barcos.

¿Israel será responsável por qualquer ataque ao Líbano. O Líbano não pode impedir um navio de deixar o país se carga e tripulantes estão em situação legal¿, dizia um trecho da carta enviada pela Chancelaria libanesa.

Ontem, um novo episódio de tensão. Uma reserva de gás natural encontrada pelos israelenses próximo à cidade de Haifa, no norte do país, poderia estender-se até as águas territoriais do Líbano, segundo o diário ¿A-Safir¿. Os libaneses estariam dispostos a brigar pela reserva, mas o ministro israelense da Infraestrutura, Uzi Landau, afirmou que o país ¿não hesitará em usar a força¿ para assegurar a exploração da reserva de Leviatan.