Título: Tráfico recruta na fronteira
Autor: Luiz, Edson
Fonte: Correio Braziliense, 24/06/2009, Brasil, p. 9

Produção de cocaína em países vizinhos aumenta e atrai brasileiros carentes que se tornam soldados do crime organizado

Cocaína apreendida no ano passado em operação da Polícia Rodoviária Federal: mais de 110 toneladas em uma década

O crescimento na produção de cocaína na Bolívia e no Peru está levando os laboratórios de refino da droga para regiões próximas da fronteira entre os dois vizinhos e o Brasil. Isso causou um aumento no tráfico no país, que hoje voltou a ser rota internacional. Em apenas um mês, por exemplo, foram apreendidos 100 quilos de cocaína no aeroporto de São Paulo, que tinham a Europa como destino. Outra preocupação das autoridades é a formação de uma espécie de cinturão de perigo, principalmente em torno do Acre e Rondônia, onde pessoas simples, sem emprego ou instrução, estão sendo recrutadas como soldados do narcotráfico.

O principal alvo de preocupação das autoridades brasileiras está a 230 quilômetros de Assis Brasil (AC). É o departamento (estado) peruano de Madre de Dios, localizado em uma região estratégica para o narcotráfico por uma série de motivos: está ao lado de um país que é consumidor, como o Brasil, há estradas trafegáveis, fica em uma área de densa floresta e é próximo da Bolívia, onde os negócios são mais vantajosos. A migração, segundo a Polícia Federal, está ocorrendo por duas razões. ¿Os traficantes peruanos entregam a cocaína pronta e o preço é menor. Com isso, o narcotráfico da Bolívia não precisa fabricar a droga, como vinha acontecendo¿, explica o delegado Mauro Spósito, da Coordenação de Operações Especiais de Fronteiras da PF.

Spósito confirma o crescimento das plantações no Peru, o que já está refletindo no Brasil desde 2007. Em apenas cinco meses, por exemplo, a PF apreendeu 890 quilos da droga em Rondônia, quase a mesma quantidade retida em todo o ano passado. Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), com os dados sobre 2008, confirmam a preocupação do Brasil em relação ao país vizinho. O documento revela um aumento de 4,5% na produção da cocaína peruana, o que representou 302 toneladas no ano passado. Isso vem ocorrendo por causa da diminuição em 28% do tráfico na Colômbia, o que abriu espaço para uma elevação de 6% na produção boliviana. Os números oficiais mostram que, em uma década, foram apreendidas 110 toneladas da droga no Brasil, mas o problema maior é que ninguém sabe o quanto, de fato, chegou às ruas.

A migração do tráfico peruano para a Bolívia também poderá ter reflexo negativo em outros aspectos, como no aumento do consumo em território nacional. ¿Se há crescimento da apreensão de drogas é porque há uma demanda para a entrada dela no país¿, constata uma fonte da Polícia Federal, observando que é impossível avaliar o volume de cocaína que chega às ruas. ¿Se, como policial, soubesse disso e não fizesse nada, deveria ser preso por não combater o tráfico¿, avalia. Porém o relatório que o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) divulgará hoje, em Brasília, vai mostrar uma estabilidade no consumo em todo o mundo. Porém, no Brasil ainda existe a percepção de que isso não vem ocorrendo, justamente pelo aumento das apreensões.

Formiguinhas O retrato da situação hoje no país é semelhante há alguns anos, quando muitos dos presos eram, em sua maioria, ¿mulas¿ ¿ pessoas usadas para fazer tráfico em pequenas escalas ¿, também conhecidos como formiguinhas. ¿As pessoas usadas pelo tráfico normalmente são pobres, desempregadas e desesperadas para conseguir algum dinheiro para sobreviver¿, relata o juiz Leandro Leri Gross, que atua em Brasileia, na fronteira do Brasil com a Bolívia. ¿Muitos, porém, fazem uma vez, veem que deu certo e voltam a fazer de novo¿. Em Cruzeiro do Sul, no sul do Acre, por exemplo, um pescador foi preso com 200 quilos de cocaína em seu pequeno barco. A droga também tinha origem peruana.

Nem mesmo a Lei do Abate, regulamentada em 2004 para impedir voos suspeitos pela Amazônia, tem intimidado os traficantes, que voltaram a usar pequenas aeronaves para transporte do pó em território brasileiro. No último dia 3, a Força Aérea Brasileira (FAB) chegou a dar tiros de advertência em um monomotor com 170 quilos de cocaína que sobrevoava o interior de Rondônia. O piloto e seu acompanhante desceram, mas conseguiram fugir. Também próximo à fronteira, mas já dentro da Bolívia, uma aeronave caiu com dois ocupantes e também carregava a droga.

Outro problema detectado pelas autoridades brasileiras foi confirmado pela ONU: o narcotráfico no Peru se aproximou do Sendero Luminoso, o grupo guerrilheiro que aterrorizou o país na década de 1970 e está ressurgindo. ¿O pior disso tudo é que a facção está utilizando crianças para guarnecer os plantios de coca¿, conta Mauro Spósito. Como a organização está instalada hoje próxima a Ayacucho, no centro do Peru, a preocupação no Brasil é que o Sendero cresça para outras regiões e se aproxime da fronteira com o país. Além disso, há um receio de que se unindo ao tráfico de drogas, o grupo se fortaleça economicamente como aconteceu com as Forças Armadas Revolucionários da Colômbia (Farc).

ONU alerta para sintéticas

Um relatório que o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) vai divulgar hoje em Brasília revelará uma preocupação que atinge o Brasil: o crescimento do uso de drogas sintéticas na América do Sul, principalmente do ecstasy. Apesar disso, o documento vai mostrar que o consumo de outras drogas está estável ou vem diminuindo em alguns países. A tendência é que usuários de cocaína e maconha tenham migrado para as sintéticas, apesar dos preços serem mais altos.

No Brasil, o crescimento do consumo de drogas sintéticas vem sendo registrado desde 2007, quando as Polícias Federal e Civil fizeram diversas apreensões. Porém, foi no Rio de Janeiro a descoberta de quadrilhas especializadas no tráfico de ecstasy, que servia principalmente jovens de classe média alta. A droga sintética vinha da Holanda e era trocada por cocaína. Em 2008, a PF apreendeu 132.621 comprimidos, enquanto este ano, segundo levantamentos oficiais realizados em maio, já são 52.407.

No ano passado, segundo a Polícia Federal, São Paulo bateu o recorde em apreensão, chegando a 105.254 comprimidos, seguido por Minas Gerais, com 25 mil. Até maio de 2009, Minas vem liderando o ranking, com 30.410 comprimidos, contra 21.145 do Rio Grande Norte. (EL)

Análise da notícia O que não está no papel

Os relatórios oficiais mostram que o ritmo de trabalho da Polícia Federal é bom, que os resultados sobre apreensões de droga estão positivos e que tudo corre com tranquilidade. Mas não é bem assim. A PF nada mais faz que sua obrigação: tem equipamento, dinheiro e ajuda internacional. E quando falta pessoal para atuar nas fronteiras, ela conta com ajuda das Forças Armadas em algumas ocasiões. Porém, isso não acontece com outros órgãos de governo, inclusive dos estados da Amazônia. E o drama se forma: cada um luta para um lado diferente, sem unir forças.

E o problema tende a piorar, mesmo que a PF continue trabalhando com a mesma ou maior intensidade. Está aberta a Transoceânica, a rodovia que ligará o Brasil ao Pacífico, via Peru. Em outras palavras, está aberta também a porta para o crime, que já começa a se organizar em Madre de Dios, às margens da estrada. (EL)