Título: Além de um som da língua
Autor:
Fonte: O Globo, 30/06/2010, Opinião, p. 7

Uma polêmica sobre inovações no ensino da língua escrita vem acirrando posições cada vez mais definidas.

Uma voz, no entanto, se faz ausente: a da universidade, dos pesquisadores brasileiros.

É defendida por alguns uma metodologia estritamente fônica, concentrada na representação dos sons das letras. A Secretaria municipal de Educação implementa, a título exploratório, métodos com este caráter em dezenas de escolas. O que torna a polêmica política é que alguns destes grupos tiveram seus materiais reprovados por programas do governo federal focados na qualidade do ensino público.

Brasil afora ocorre a escolha, pelas secretarias, de grupos privados em detrimento de produções de instituições educacionais públicas. Os argumentos usados como justificativa, na contramão das políticas do MEC, ecoam coerentemente em tempos de valores e condutas neoliberais. Citam-se o valor da técnica como eficaz para a urgência em agir; a constatação de um fracasso abissal colocado como fruto de modos desastrosos de ação do Estado; o sucesso internacional dos métodos de consciência fonológica.

Este método estaria de acordo com um consenso científico internacional.

Apagam-se, assim, as vozes há anos ocupadas das questões educacionais brasileiras, de pensar, analisar, criticar, reformular e propor modos pedagógicos de tratamento da letra na escola para o nosso aluno.

Ignora-se que os problemas de países diferentes são, também, distintos.

Ouvimos o desmerecimento acrítico dos modos de aprender aprovados pelo MEC. Entretanto, a atualidade técnica apresentada como redentora ciência, respaldada num pano de fundo de neurolinguística, revertese num empobrecido método fônico, já utilizado antes no Brasil. Talvez este método ainda tenha êxito em realidades internacionais assemelhadas sociologicamente aos tempos de ouro da escola pública brasileira, mas não devemos esquecer que, embora esta funcionasse bem para as elites, abandonava quase metade da população ao analfabetismo.

Muita água rolou para acompanhar os desdobramentos de nossa escola, que mudou também. Hoje, exames de avaliação nacionais comprovam que as crianças até aprendem a ler, se ler significar esta relação fundamental entre letras e sons, base da escrita. Entretanto, elas não vão adiante: isolado dos modos escolares de tratar a língua escrita, seu letramento não se desenvolve. Os métodos estritamente focalizados na relação letra-som empobrecem o idioma, feito de muitas consciências além da fonológica. As consciências sociológica, cultural, regional, literária, gramatical, morfológica, lexical e tantas mais, estas sim, e sem que uma se sobressaia a outra, circunscrevem a língua escrita a ser ensinada.

Para aprender a escrever, é preciso superar o estágio da tradução de letras em fonemas. A questão é a leitura e a escrita a serem produzidas na cultura, a letra articulada à literatura, à ciência, às leis e a outros discursos legítimos que produzirão cidadãos leitores.

Os métodos fônicos empobrecem alunos, professores e a língua, e os modos como são implementados são opressores, desautorizam os docentes de suas formas autônomas, ecléticas, experientes, ajustadas a alunos sempre diferentes, que devem ser tratados na sua diversidade.

E tiram o professor de seu lugar de criador, de produtor legítimo do fazer pedagógico.

A universidade como lugar de produção de conhecimento tem estado ativa nas inovações no ensino da língua escrita. Nestes espaços, o método de alfabetização de hegemonia fônica é tido como retrocesso, afastando as crianças de uma perspectiva cultural, enraizando-as em práticas cognitivas restritivas, técnicas, sem fortalecer sua cidadania, seu crescimento como ser pensante na sociedade atual, na qual a letra ganha dimensões multimidiáticas e plurimodais, para além da simples expressão de um som da língua.