Título: Dinheiro público, herança em votos?
Autor: Scofield Jr., Gilberto
Fonte: O Globo, 18/07/2010, O País, p. 8

Cem milhões dependem de pagamentos do governo

Oesforço do governo federal para tirar da pobreza absoluta 12,8 milhões de pessoas nos últimos anos ¿ resultado, principalmente, de políticas de aumentos reais do salário mínimo e do funcionalismo, bem como da ampliação do Bolsa Família ¿ transformou o orçamento federal numa grande folha de pagamento, segundo cálculos do economista especializado em contas públicas Raul Velloso. Tomando como base as despesas não financeiras da União em 2009 (que excluem pagamento de juros da dívida pública ou concessão de empréstimos), 48,8 milhões de brasileiros dependem diretamente do dinheiro advindo da arrecadação de impostos.

São grupos que vão de gente beneficiada com o seguro-desemprego ou o Bolsa Família até assalariados do funcionalismo público e aposentados, que contribuíram boa parte da vida em troca da remuneração.

Como, na sua grande maioria, esses pagamentos se configuram em renda familiar, o número de beneficiados é na prática bem maior. Se levado em conta que essa renda ajuda a manter ao menos duas pessoas (núcleo familiar básico) ¿ e, no caso do Bolsa Família, núcleos familiares mais numerosos ¿, argumenta Velloso, a quantidade de brasileiros que vivem de recursos advindos da arrecadação tributária sobe para cerca de cem milhões de pessoas. Mais da metade da população do país.

No orçamento de 2009, observa o economista, esses gastos representaram R$570,5 bilhões, ou 77% de todos os gastos não financeiros ¿ uma enormidade, dado que as despesas com saúde representaram 7,3% dos gastos totais, e os investimentos públicos, 6%. Na comparação com o orçamento de 2005, o número de brasileiros beneficiados diretamente passou de 40 milhões para 48,8 milhões, alta de 22% em cinco anos.

¿ Quando um governo tem tanta gente dependendo dele em termos de renda, isso dá um poder de influência eleitoral muito grande ¿ diz Velloso. ¿ Especialmente nos últimos anos, quando foi praticada uma política agressiva de aumentos reais do salário do funcionalismo e dos aposentados, sem contar a ampliação maciça do Bolsa Família.

Especialista: voto não é automático

Essa não é bem a lógica de cientista políticos, filósofos e sociólogos especialistas em analisar o impacto de políticas públicas no processo eleitoral, ainda que todos concordem que as políticas de distribuição de renda possuem um componente poderoso de atração de votos. Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da FGV de São Paulo, diz que programas como o Bolsa Família têm o poder de atrair votos por causa da percepção de melhora na vida de famílias que não possuíam renda e passaram a tê-la. Mas ele não acha certo dizer que as políticas de recomposição real de salários e aposentadorias do governo Lula tenham o poder de se transformar automaticamente em votos para a candidata governista, Dilma Rousseff .

¿ Há uma expectativa de voto de aposentados do interior do Nordeste, por exemplo, que é muito diferente em comparação a aposentados de grandes núcleos urbanos no Sudeste e Sul, gente que provavelmente possui outra base educacional e acesso à informação ¿ diz Abrucio. ¿ E nem todos os funcionários públicos estão satisfeitos com as políticas do governo para o setor. Esse raciocínio tem limites.

No Bolsa Família, ganho eleitoral

Para o filósofo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP José Arthur Giannotti, a atração de votos depende menos do tamanho do grupo beneficiado e mais da percepção que essas pessoas têm de que suas rendas vêm melhorando ou seus salários são corrigidos de maneira justa:

¿ As políticas de transferência de renda são positivas, e é normal que as classes menos favorecidas que se beneficiam delas respondam pelo voto. Mas os reajustes do funcionalismo e de aposentados nos últimos meses não são suficientes para apagar desses grupos a impressão de que são mal pagos ou que suas rendas estão defasadas. O que importa é a capacidade que o grupo político tem de convencer a população de que está tentando resolver a injustiça.

No caso do Bolsa Família, porém, o ganho eleitoral é muito evidente, diz o cientista político Rodolfo Teixeira, doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), até porque é um benefício de fato, o que não pode ser dito de aposentadorias e salários do funcionalismo. Tanto que não só o governo federal, mas os governos locais, que distribuem essa renda, tentam se apropriar do programa e transformá-lo em apoio político. Mas há limites.

¿ As classes menos favorecidas não têm muita clareza sobre de onde vêm os recursos, então tendem a apoiar os governos. Ainda assim, após oito anos como beneficiárias da bolsa, percebe-se que as famílias passam a querer coisas além da sobrevivência, como eletrodomésticos.

Valeriano Mendes Ferreira Costa, diretor do Centro de Estudos de Opinião Pública da Universidade de Campinas (Unicamp), diz que a ampliação na quantidade de pessoas que dependem de renda advinda da arrecadação de impostos só se transforma em voto com crescimento econômico.

¿ Sem o ritmo de crescimento econômico atual, dificilmente a ampliação dos benefícios sociais, como Bolsa Família e seguro-desemprego, sozinhos, teriam capacidade de se transformar em apoio político para Lula e sua candidata como se vê hoje entre as classes menos favorecidas e em parte do funcionalismo.