Título: CGU e MPF apontam desvios em cooperação enternacional
Autor: Maltchik, Roberto
Fonte: O Globo, 18/07/2010, O País, p. 17A

Acordos apresentam 28 tipos de irregularidades, como compras superfaturadas e diárias e passagens irregulares

MARINUS MARSICO: ¿É prática antiga, que remete aos anos 1990, quando se falava em Estado mínimo¿

BRASÍLIA. Carimbados pelas Nações Unidas como programas capazes de modernizar o serviço público, os chamados acordos de Cooperação Técnica Internacional (CTIs) se perpetuam na administração federal como instrumento de terceirização de atividades típicas do Estado, sem sofrer a mesma fiscalização exercida sobre outros gastos do governo.

Auditorias da Controladoria Geral da União (CGU) e investigações do Ministério Público Federal (MPF) apontam que tais acordos, firmados entre ministérios e organismos como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), transformaram-se em terreno fértil para o desvio de recursos públicos, e parte deles nem de longe atende aos objetivos propostos. Como resultado, os projetos executados pelo Pnud no Brasil são classificados como de alto risco pelo Escritório de Auditoria e Fiscalização, órgão de monitoramento da entidade.

Entre as falhas, ausência de controle sobre execução

Este ano, a CGU auditou 44 acordos executados com verba federal ¿ com ou sem complemento de dinheiro internacional ¿ por 13 ministérios, e encontrou uma extensa lista de 28 tipos de irregularidades. Compras superfaturadas; pagamentos irregulares de diárias e passagens; contratações de serviços e consultorias estranhos aos projetos, além de baixa execução física ou financeira. Os auditores encontraram ainda falhas graves de fiscalização: ausência de controle sobre a execução e inexistência de sistema contábil de acompanhamento de projetos. A CGU finaliza o cálculo do montante de recursos públicos que podem ter sido desviados. Segundo a lei brasileira, a responsabilidade pelos eventuais desvios recai sobre o gestor do órgão público que firmou o termo de cooperação internacional.

¿ Esse é um problema sistêmico na administração pública. Faz-se uma simulação para permitir que pessoas sem vínculo exerçam atividades típicas de Estado. Há casos, como do Ibama, onde uma funcionária contratada pelo Pnud estava no órgão há 14 anos, cometeu irregularidades, mas não pôde ser responsabilizada administrativamente, pois não era funcionária do governo ¿ relata a procuradora Raquel Branquinho, do Ministério Público Federal do Distrito Federal (MPF-DF).

Raquel é autora de ação civil pública, encaminhada em junho à Justiça Federal, que apontou suposta fraude de R$4 milhões na execução de acordo firmado entre o Ibama e o Pnud.

O caso do Ibama é emblemático. Firmado em 2002 para aprimorar o sistema de combate ao desmatamento, o acordo de cooperação internacional foi usado para contratar consultores que entregaram textos retirados da internet, serviços que jamais foram prestados, e para a compra de combustível e locação de carros com preços superfaturados. Na ação civil pública, quatro pessoas foram denunciadas, entre elas o ex-diretor de Proteção Ambiental Flávio Montiel, que se disse vítima de perseguição.

¿ Para combater pesca ilegal, contratamos oito ou dez lanchas para ir atrás dos barcos dos pescadores. Não tem outro jeito. O Ibama tinha um barquinho de madeira. A contratação de recursos do Pnud foi feita para reverter o grau de penúria em que o Ibama se encontrava ¿ argumenta Montiel.

A justificativa do ex-dirigente é a chave para compreender o desvirtuamento dos projetos. Segundo informe da CGU, os acordos têm por finalidade ¿desenvolver capacidade técnica, por intermédio de acesso e incorporação de conhecimentos, informações, tecnologias, experiências e práticas em bases não comerciais¿. Recuperar a ¿penúria¿ do Ibama, para o MPF, é tarefa do governo, não do Pnud.

¿ Isso é uma excrescência! É uma prática antiga, que remete aos anos 1990, quando se falava em Estado mínimo. Permite, por exemplo, que se fure o teto do funcionalismo público com contratação de pessoal com atividades típicas de Estado ¿ explica o procurador Marinus Marsico, representante do MPF no Tribunal de Contas da União (TCU).

Em 10 de junho, o TCU negou recurso ao Ministério da Educação contra acórdão que determinou o encerramento de dois acordos de cooperação internacional firmados pela Secretaria de Educação Básica (SEB). Segundo o TCU, no primeiro orçamento do programa, de R$7,5 milhões, 86,6% referiam-se à contratação de serviços usuais, como passagens aéreas, hospedagem e alimentação de docentes. Ao TCU, a SEB argumentou que ¿nem sempre é possível distinguir com clareza o limite entre atividades de efetiva cooperação técnica e atividades ditas instrumentais¿. Diante da ameaça de paralisação de programas de governo, o TCU ofereceu dois anos à SEB para encerrar os acordos. No despacho, o ministro José Jorge diz que é ¿prática disseminada¿ na administração pública.

Este ano, até julho, gastos de R$835,8 milhões

A pedido do GLOBO, a ONG Contas Abertas levantou no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) o volume de verba pública que abasteceu tais acordos nos últimos dois anos. Em 2009, a União pagou R$581,2 milhões para atender acordos de cooperação internacional. Este ano, até 1º de julho, os gastos já somavam R$835,8 milhões.

¿ No começo, os projetos surgiram com temas específicos, com começo, meio e fim. Mas, rapidamente, passaram a ser usados para atividades de rotina, que muitas vezes viabilizam financeiramente a operação desses organismos no Brasil ¿ diz o economista Gil Castelo Branco, diretor da ONG Contas Abertas.

Em 2009, a CGU fez recomendações aos órgãos federais com o objetivo de reforçar a fiscalização sobre a execução dos acordos de cooperação internacional. Também presta apoio à Agência Brasileira de Cooperação, órgão do Ministério de Relações Exteriores responsável pela autorização dos acordos. A CGU presta assistência para a criação do Sistema de Informações Gerenciais de Acompanhamento de Projetos (Sigap), lançado em 2009, mas que ainda não tem data para entrar em operação. O PNUD, por meio da assessoria, informou que mantém boa relação com os órgãos do governo e colabora com todos os pedidos de informação da CGU.