Título: Confusão estatal
Autor: Monteiro, Márcio
Fonte: O Globo, 17/07/2010, Opinião, p. 7

Não é de hoje que se anuncia a deficiência da infraestrutura existente no Brasil, apontada como um dos maiores gargalos para o crescimento sustentável do país. Há muito se ouve, repetidamente, a necessidade de realização de investimentos significativos em geração de energia, desenvolvimento de malhas de transporte, recuperação e modernização de portos e aeroportos, instalação e ampliação de redes de abastecimento de água e saneamento.

No entanto, infelizmente o que temos visto é que a maioria desses projetos tem tardado muito a sair do papel. Isso quando há projetos, pois muitas vezes não existem sequer planos elaborados para suprir as carências crônicas, já há muito conhecidas.

Deve-se louvar, portanto, a recente publicação do edital para a implantação do trem-bala Rio-São Paulo, que ligará as cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas. Trata-se, como sabido, de empreendimento de suma importância para o país, muito carente de alternativas de ligação entre as duas principais capitais brasileiras, sendo o desejo do governo federal que a sua inauguração ocorra antes das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.

O modelo proposto, no entanto, causa algumas perplexidades, que devem ser analisadas com cuidado. Ora, questão fundamental para a realização de investimentos tão grandiosos em infraestrutura diz respeito às suas fontes de custeio. Nesse aspecto, não há dúvida de que o Estado brasileiro não dispõe dos recursos necessários para fazer frente a todas as necessidades. Sendo assim, para que sejam alcançados os objetivos mínimos que permitam ao país continuar crescendo, será necessário atrair investimentos privados. É essencial, portanto, criar um modelo de negócio atrativo, uma vez que todo investidor que se dispõe a correr riscos se preocupa com o retorno financeiro de seu investimento. Quanto maior o risco, maior deve ser o retorno.

Chama a atenção, neste caso, a presença ostensiva da União na gestão empresarial do negócio, o que decorre da previsão de que o licitante vencedor deverá constituir uma sociedade a uma empresa pública federal a ser criada - a futura Empresa de Transporte de Alta Velocidade (ETAV).

Medida semelhante foi adotada pelo governo no modelo de exploração do pré-sal. Segundo a proposta apresentada, a nova estatal do petróleo será sócia compulsória de qualquer empresa que vença os leilões na área do pré-sal, com direito de veto e voto de qualidade no Comitê Operacional dos consórcios, assumindo verdadeira atividade de gestão empresarial do negócio.

No caso do trem de alta velocidade (TAV), caberá à mencionada empresa pública ação preferencial (golden share) que lhe dará direito de veto sobre questões ligadas à gestão do empreendimento, como a inclusão de novas atividades ao seu objeto social ou alterações da sua composição societária.

Diferentemente do que se alegou em relação ao pré-sal, no entanto, não há nenhuma questão referente à soberania ou segurança nacional - o TAV não pode nem mesmo ser considerado como um serviço indispensável. Não se vislumbra nenhuma razão para a participação ativa da União ao lado do investidor privado, restringindo-lhe a liberdade de gestão empresarial.

Curioso é que esse modelo de concessão foi aprovado por resolução do Conselho Nacional de Desestatização, que, ao mesmo tempo em que atribui à iniciativa privada o empreendimento, prevê a criação de uma nova estatal.

A nossa Constituição prescreve ao Estado um papel subsidiário na ordem econômica, restringindo a sua atuação direta àquilo que for essencial ao adequado funcionamento do mercado.

Quanto à necessidade de fiscalizar a atuação deste futuro concessionário, já existe a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), uma reguladora constituída com esse objetivo, a quem cabe, inclusive, o controle quanto às movimentações societárias dos concessionários de transporte terrestre.

Ao que parece, além de revelar uma clara confusão entre gestão empresarial e exercício de atividade regulatória, o modelo estabelecido para o trem-bala ainda viola o princípio da proporcionalidade, pois lança mão de um instrumento de forte intervenção na condução de uma atividade econômica. Existem meios muito menos gravosos, por meio da agência reguladora competente já existente e em funcionamento.

MÁRCIO MONTEIRO REIS e RENATO OTTO KLOSS são advogados.