Título: O gigante ferido
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Fonte: O Globo, 25/07/2010, Opinião, p. 6

É a civilização mais antiga do mundo, contemporânea dos egípcios (mas a velha civilização egípcia, hoje, só existe nos museus). Enquanto a Europa assistia à correria dos bárbaros, os chineses da dinastia Tang (lá pelo século seis da nossa era) já produziam arte refinada, que se vende aos milhões em qualquer leilão. Quando os missionários jesuítas chegaram à China, no século XVI, encontraram um majestoso Império do Meio que se considerava, com toda a razão, o centro do mundo.

A grandeza da China ¿ com seus scholars de unhas longas, adeptos do chá, e um serviço público escolhido por concurso e embebido na tradição confuciana ¿ durou até o final do século XVIII.

De repente, tudo começa a dar errado, e os ingleses se apresentam com o apetite de maior nação colonialista do mundo. A Guerra do Ópio ¿ que a Inglaterra desencadeou para obrigar os chineses a comprarem o ópio da Índia ¿ é dos capítulos mais vergonhosos da história universal. E no espaço aberto pelos ingleses entraram os franceses, os alemães, os americanos, cada um exigindo a sua parte no butim. Não espanta que, com esse passado, o maoísmo pudesse impor sem maiores problemas sua versão peculiar de totalitarismo (hoje se sabe a que custo).

A China agora está de volta, numa nova roupagem. Por um desses milagres da História de que os chineses têm o segredo, ela de repente se mostra como a ponta da economia de mercado. Cresce como ninguém mais. Compra cada vez mais terras na África. Inunda o planeta com seus produtos que já foram ordinários, mas que se aperfeiçoam a cada dia.

Tudo isso provoca uma mistura de receio e de inveja. Bate-se na tecla de que países emergentes como o Brasil deveriam mirar-se no modelo chinês. O século XXI já estaria definido como ¿o século da China¿.

Há diversas razões para desconfiar disso tudo, e desejar para o Brasil um modelo diferente.

Trata-se, afinal, de uma ditadura, que esmagou, na Praça da Paz Celestial, uma tentativa meio desastrada de oposição.

Mas regimes políticos sempre podem mudar. Difícil é mudar certas coisas que estão acontecendo ali, e que parecem irremediáveis.

A China é o maior exemplo de que o mundo não pode simplesmente seguir no rumo que escolheu há uns três séculos atrás. Não se pode mais praticar o crescimento pelo crescimento.

Se é evidente que os recursos naturais são exauríveis, em nenhum lugar isso é tão óbvio como na China. A velha terra chinesa está exausta, e simplesmente não aguenta o atual ciclo de desenvolvimento a todo o vapor.

Medindo o custo anual da poluição, em termos de erosão, prejuízos à saúde, mortes prematuras, infraestrutura danificada, o Banco Mundial diz que isso equivale a 5,8% do PNB. Abata-se isso do total, e o crescimento chinês deixa de ser invejável.

O problema político não é menos sério. A impressão, até agora, é de monolitismo. Mas são cada vez mais frequentes, nos jornais, não só as notícias de greves, mas de cidadãos desesperados que invadem creches com uma faca na mão, e não morrem antes de terem cobrado o seu preço em outras vidas.

É um desequilíbrio que está aumentando. No Brasil, nos anos 60, o crescimento do Sudeste atiçou ondas migratórias que acabaram com o sossego de Rio e São Paulo. Esse êxodo amainou, inclusive porque há cidades médias que estão crescendo e absorvem o fluxo.

Agora, imaginem a China ¿ algo como 800 milhões de indivíduos, no interior pobre, aspirando às riquezas que se acumulam no litoral.

É assim que um sistema político perde legitimidade. A legitimidade de Mao vinha do fato de que, depois de décadas de humilhação nas mãos dos estrangeiros, a China passava a resolver por si mesma os seus problemas. Hoje, ela se afirma por um crescimento impressionante; mas os problemas são tantos que podem vir a cobrar um preço cruel da burocracia partidária.

A prosperidade traz a insatisfação. Como ensinou Samuel Huntington, modernização não combina bem com regimes de partido único. O próprio progresso é uma adaga apontada para o coração do sistema chinês.

O governo já não impõe respeito, porque Pequim está longe, e não responde eficazmente às queixas que se acumulam no interior. Funcionários corruptos começam a provocar indignação. Daí manifestações pouco divulgadas, mas que chegam a mais de cem mil por ano.

Não há mais uma ideologia que compense as asperezas do dia a dia. A ideologia foi substituída pela prosperidade. E se a prosperidade não vier para todos? Os que ficam de fora não vão reclamar?

A China tem uma capacidade de adaptação de que nenhum outro país dispõe. Ela pode ir navegando entre a sua infinidade de problemas, e chegar a algum compromisso entre modernidade e governo autoritário. Mas o que fica absolutamente claro é que não é um modelo a seguir, e não é o gigante invencível que as estatísticas podem sugerir.

Se for para copiar, que seja pelo lado da educação e da persistência. Mesmo com as restrições políticas, o país se adapta com uma velocidade impressionante às exigências de um sistema produtivo moderno (meio ambiente à parte). Eles estão se tornando competentes em tudo. Que diferença do nosso flácido e inepto sistema de educação pública!

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.